segunda-feira, 6 de abril de 2009

Réquiem de um mito

Gran Torino – provavelmente – é o testamento fílmico de Clint Eastwood. Este texto (cavaleiro errante) seguirá (quixotescamente) essa premissa-fantasma. Me arrisco, nada a perder.


Sempre difícil é – e instigante para o crítico de cinema – falar de um filme deste autor. Num artigo, obviamente, não dá pra falar de tudo o que se quer falar. Em livros de 1000 páginas, com discurso lógico-racional científico sistematizado ocorrem más interpretações, num artigo de poucos parágrafos o risco é total, o bom/mal é que escrevo solto, pra ninguém. A verdade é que ao invés de crítica, faço escrito de cinema. O crítico profissional escreve pra certo leitor, tem um público que deve fazer compreender, a linguagem que deve ser clara, o método que deve ser didático. Admito que também tento isso quando escrevo, mais ainda quando falo para um público num espaço de cineclube, mas a verdade é que sou um amador, um crítico amador – aquele que escreve movido pela paixão promovendo um afastamento crítico. Talvez melhor termo não o “crítico amador”, mas o “amador crítico”. Mais honesto.

As etapas de organização do artigo (divisão em idéias-parágrafos) vem como pede a essência da intenção. Delimitado o desafio (moinho de vento), começa a peleja, caneta em riste, com a obra. A tentativa elementar é iluminar. O universo ficcional de um autor como um rio; onde se mergulha, depois sai, enxuga-se, e, à margem, analisa. A tentativa elementar é iluminar, para iluminar-se. Como Clint, antes e após, estamos sempre na escuridão.


A resposta que devo dar vem da pergunta: Porque acredito que Gran Torino é o testamento fílmico de Clint Eastwood?
Além de conter todos os temas que atravessaram os personagens clintianos: o passado obscuro presente, a solidão, a velhice, o sentimento de paternidade, a posição crítica frente às instituições, os dilemas morais mais sérios (justiça e morte), além de traços estilísticos como o humor irônico, o melodrama, o jogo de sombras, a metalinguagem, os closes que enfatizam olhares expressivos, o filme traz – provavelmente – o ponto final de uma grande travessia, trilhada por um cavaleiro solitário que, sob trevas, sobrevivia sempre, até então.
Apesar de saber que este não é seu último filme como diretor, acredito que seja sua última aparição como personagem (este que foi Blondie, Harry Callahan, Josey Walles, William Munny, Frankie Dunn,...). O ocaso do maior mito do cinema americano moderno. Acabou – o personagem morreu.
E que morte! Sabemos, sutilmente, que uma doença grave vai matá-lo em breve; sabemos também que nenhum de nós – seres humanos – pode vencer a morte, o nosso inimigo comum e invencível. O herói-Clint - mero homem – não vence a morte, mas escolhe quando, como, onde e porque. Deixa tudo do seu jeito – como sempre fez. Decide, e se prepara para o seu último duelo, o maior de todos, o duelo Final! Ele enfim enfrentará a Morte. Sim! Pois é disso que se trata esse duelo final - o resto é roteiro.
O personagem Kowalski eticamente é o mesmo herói fulleriano por excelência: o herói que se nega herói – em atos e consciência. E, como Lee Marvin na obra-prima “The Big Red One”, traz o peso do ‘assassinato de guerra’. Esse personagem-arquétipo atinge dimensão mítica particular ao ter a face e as rugas (físicas e metafísicas) de Clint Eastwood; e o filme – roteiro que poderia ser filmado por qualquer um – ganha a dimensão de réquiem, através da mise-en-scène (direção) e do passado (obra) desse veterano do cinema moderno americano.
Alguns acordes dessa grande partitura atingem momentos em suspensão, como se anjos murmurassem nos silêncios, nos olhares entre trevas, nos segundos a mais antes de um corte para a continuação da estória. Uma dessas cenas é o diálogo com o padre no bar. Ao nos revelar sobre seu passado como combatente e cortar as asinhas infantis do padre acerca dos assuntos sobre vida e morte, Clint admite: talvez fale melhor sobre morte do que vida. Na cena seguinte, através do drama criado de luz (no chão a lâmpada hora ilumina seu rosto, hora o deixa nas trevas), ação (rifle em punho, escorrega, atira, cai), som (tambores de guerra) e fúria (expressão), a guerra é lembrada – na sua frente outro asiático inocente e perdido. Ele erra o tiro, é o início de uma redenção? Não. Não existe redenção para qualquer persongem clintiano, o herói-Clint apenas faz o que acha certo. É simples, duro - como a vida, como a morte.


A mais bela cena do filme é um das mais belas do cinema: o personagem Kowalski – que carrega um sentimento de paternidade frustrada com a incomunicabilidade inexplicada – sente a angústia de impotência na espera de um ser amado (uma Hmong) que pode estar em perigo. E então, o choque! Ela, espancada e estuprada por um membro de sua família e dentro do seu bairro, atravessa a porta de casa. Ele corre pra escuridão, é todo ódio da guerra, da violência, do que fez, do que os outros fizeram, do que o homem é capaz de fazer... rasga os punhos, suas mãos estão sujas de sangue e culpa, ele senta exausto, absorto, confuso... e chora... uma lágrima. Parece simples, verossímil o choro desse personagem duro-sentimental dentro do enredo desse filme, mas – dentro da obra – adquire dimensão expressiva assustadora. É o corpo-imagem de Clint Eastwood que chora! Nunca esse personagem verteu uma lágrima. Esse solitário sempre foi o homem duro, triste, carregador do peso da dor calada. Essa lágrima nasce não apenas da dor de Walt Kowalski, mas do peso de todos os corpos, de todas as rugas, de todas as culpas e decepções, de todas as escuridões, de todos os prantos engolidos. É belo, o momento é único... é o prenúncio de um fim.
A hora e a vez de Clint Eastwood – imagem-mito – chega em Gran Torino, testamento fílmico de um dos maiores personagens de todos os tempos.

Mateus Moura.