domingo, 30 de maio de 2010

Profissão: cineclubista (parte IV)

[Inovacine - Marabá - maio - 2010]

"Marabá é uma cidade perigosa", foi a frase que mais ouvi antes de viajar.
Sim, Marabá com certeza é uma cidade perigosa, tal qual Belém. Mas a violência e a arma que pude presenciar por lá - e de que pouco se fala - é representado pelo binário: comprometimento ideológico forte + câmera/gravador em punho.
Historicamente registrando os testemunhos da injustiça sanguinária promovida pelos grandes proprietários de terra o cinema de Evandro Medeiros e sua equipe produz material pedagógico importantíssimo para figurar no currículo escolar regional. Séries de filmes tratam com objetividade e propriedade a tensa situação histórica da região, muito pouco (re)conhecida pelo cidadão paraense (afinal Belém e Marabá são do mesmo Estado!).
O cineclube como espaço de discussão democrática pôde, na noite do dia 27 de maio (quinta-feira), fazer um debate de mais de 2 horas acerca de tais problemas. Como local que agrega o sonho e a realidade em seu bojo, o enredo e a história em sua pauta, a luta social e o fantástico abstrato em sua tela, o cineclube é hoje o espaço da liberdade de expressão por excelência. Concordemos, nada escapa ao cinema.
A programação, realizada no GAM (Galpão de Artes de Marabá), encantou e estranhou públicos de todas as etnias e culturas. Parafraseando os depoimentos: houve quem se expandiu espiritualmente com a loucura lúcida de Glauber Rocha, quem foi marcado para sempre com a sensibilidade sutil de Kenji Mizoguchi, quem descobriu o que é cinema com Sergei Eisenstein e quem dialogou historicamente o gangsterismo americano dos anos 30 com o de sua terra e se assustou com a realidade digital de Michael Mann. Concordemos, nada escapa ao cinema!
No dia 28 de maio (sexta-feira) foi realizada a terceira vídeo-conferência do INOVACINE, proporcionada pelo audacioso NAVEGAPARÁ. Para quem acompanha o projeto é interessante assistir a evolução dos passos. Enquanto na primeira vídeo-conferência falávamos da nossa paixão pelo cinema e na crença educacional revolucionária do cineclube, na terceira já avaliamos a adesão de parte do Pará a tais idéias e a união dos crentes numa próxima Jornada Paraense de Cineclubes e numa futura Federação Paraense de Cineclubes.
Me sinto honrado por fazer parte deste projeto e ter a possibilidade de entrar em contato com pessoas tão interessantes e interessadas no interior. Ulterior é a vontade de unir cada vez mais, conhecer cada vez mais, expandir cada vez mais.
O cinema é a vela, o cineclube a caravela, nós passageiros, encantados pela possibilidade e pelo alcance das viagens. Mas diferente do que pode parecer, a intenção não é colonizar, mas antes se despir, e através da violência do amor, comungar o que é de todos e de ninguém.

Mateus Moura (30/05/10).

terça-feira, 11 de maio de 2010

Todos os anos são incríveis


Os erros se repetem. Como no início, a coisa que chamavam cinema era avacalhada, hoje, a coisa que chamam tv segue o mesmo destino trágico. Como aconteceu com o quadrinho, que para ser grandioso era comparado a literatura; agora, uma série para ser respeitada é comparada ao cinema.
Quem se interessa por arte não lê livros, mas obras. Nem vê filmes, mas obras. Nem séries. Obras, isso o que importa. E cada linguagem com seu limite, logo sua liberdade. Cada contexto também delimita: poucos recursos grandes riscos, grandes recursos poucos riscos, e por aí vai. A arte é a obra.
Obra lembra arquitetura, construção. Obra de arte, simples assim.
Felipe Cruz, louco pelas artes vilipendiadas da animação e da tv, escreveu seu primeiro ensaio acerca do segundo problema em seu blog. O périplo reflexivo promete... acompanhem.

Mateus Moura.

domingo, 9 de maio de 2010

grandes lobas, grandes lobos (cinema francês)

Corpos femininos em movimento. Estátuas que andam. Posturas que fascinam. Gestos que marcam nossa existência.
Virou praxe repetiram a frase de Glauber Rocha: "o cinema é pintura em movimento". A intenção comum aos que proferem a sentença é dar respaldo à sétima arte comparando-a a mais que canonizada - e com razão - arte da pintura. Mas já são 115 anos de tanta beleza que já se tornou piegas tais retóricas.
A verdade é que ninguém faz a História do Cinema, ele se faz através de suas imagens. E cada um vai fazendo a sua história do cinema a partir da História. Na minha, essas mulheres e esses homens foram extremamente marcantes. A utilização da "vedete" como elemento comercial é visto como jogada hollywoodiana, mas existe em qualquer lugar. A imagem de uma estrela foi tão bem aproveitada por grandes artistas audio-visuais que se torna uma grande tolice se tolir e não nos apaixonar por elas. No cinema francês, 3 imagens de grandes lobas, imagens pertencentes a 3 grandes lobos:


Musidora como Irma Vep em Les Vampires de Louis Feuillade (1915)


Brigitte Bardot e o cinemascope em Le Mépris de Jean-Luc Godard (1963)

Brigitte Lahaei na fantasia de Jean Rollin em Fascination (1979)

Mateus Moura.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Louis Feuillade e o mistério do movimento


É recorrente a sensação, ao se visitar o cinema mudo, de que todo o cinema - esteticamente falando - tinha sido conquistado nos primeiros 30 anos.

Louis Feuillade, nos anos 10, já tinha dominado a encenação cinematográfica com a elegância de um dos homens mais rigorosos da história da arte visual narrativa. Contemplar o "ciné-roman" Les Vampires, de 1915, é estar em contato com a própria mise-en-scène. Este termo, problemático na teoria crítica, é - não diria a alma do cinema - mas parte elementar de sua essência enquanto ferramenta que propõe uma construção artística. O aparato cinematográfico utilizado para produzir uma obra de arte requer a atenção a esse elemento estético, artifício expressivo de todos os grandes cineastas narrativos. Teatral e pictórico (já que envolve encenação e quadro), narrativo e plástico (já que envolve movimento da trama e coreografia de movimentos), a mise-en-scène cinematográfica é para muitos a essência da sétima arte. Trabalhar a mise-en-scène de uma obra de cinema é manipular o tempo/espaço da imagem. Não é à toa, a frase já virou velho ditado: “tudo está na mise-en-scène”.

Feuillade, cineasta popular da Gaumont, escarnecia os vanguardistas e falava que fazia cinema para o povo e não para elite. Somado a isso segue-se a característica, comum ao seu tempo, de enobrecer essa nova arte que muitos desacreditavam como menor e sem futuro. Apesar da rapidez industrial com que lidava o diretor no ritmo diário da empresa em que era funcionário (fazia um curta numa tarde e um episódio das suas séries em 7 dias), o rigor na composição do quadro e na encenação de seus atores é, na maioria das cenas, impressionante em sua virtuosidade e sutileza. Feuillade queria, ao mesmo tempo, emocionar multidões e dialogar com os grandes artistas. Teve êxito.

Se utilizando normalmente do plano-sequência, com inserções (normalmente detalhando o conteúdo de uma carta ou mostrando uma foto), a matéria-prima de seu cinema foi o balé de posturas e gestos de atores contracenando entre si e com o cenário dentro do quadro, comumente totalmente focado. Sua significativa disposição espacial na utilização primorosa tanto do centro do quadro como de sua profundidade e os sutis jogos de olhares e de encobrir/expor personagens é de um profundo domínio do movimento em si. A maior aula de mise-en-scène que o cinema já deu, um baile!

A experiência estética que tive com este francês foi nostalgicamente análoga a que tive com o famoso quadrinista belga Hergé. Sente-se que as tramas das aventuras de Philipe Granger e Tintin vêm de uma mesma fonte. Não obstante, todo o rigor na composição do quadro e sua justaposição na montagem em continuidade de cada sequência, além das geniosas perseguições, o pitoresco humor, as fascinantes personagens, o uso expressivo da cor (Feuillade se valendo apenas de preto, branco e cinza), e, principalmente, o suspense que se intensifica acerca da “próxima cena”, no caso de Hergé no momento de virar a página, no de Feuillade os segundos de espera de um letreiro, enfim, todas essas estéticas sensações me deram um sentimento dèjá vu anterior à análise crítica.

Surpreendentemente, o que se segue ao suspense dessa espera, nos dois casos, é uma surpresa estética, pois sempre são únicas as cenas que se desenrolam. Um pré-estiliza um espaço real e coordena a coreografia de seres humanos, outro os desenha e a partir da observação do movimento real cria o irreal movimento estático através dos traços.

Interessante essa característica estilística me chamar atenção nessa comparação pois se trata de um elemento expressivo da obra a partir da montagem.

Em 2010, analisando os filmes de Feuillade de quase 100 anos atrás parece que todo o resto é meio igual, e ele, conciso e econômico, simples e complexo, é o notável diferente, um destaque, um dos grandes pioneiros, um dos atuais mestres.

Mateus Moura (05/05/10)

domingo, 2 de maio de 2010

FULLERIANAS PARTE 6

[The Krimsom Kimono, 1959]


Set-piece number one
: a sequência começa com a mocinha linda a folhear fotos, na parede o retrato dos velhos amigos de guerra. Montagem paralela: enquanto ela e o homem delicado durão japonês se apaixonam, o homem durão delicado americano trabalha duro e só numa batida policial em busca da resolução do crime, que aqui - contrabandisticamente - Fuller transforma em sub-trama do filme policial que na verdade é filme de amor. Enquanto ela pega no pau do boneco de kendô e delicadamente troca impressões sobre arte enquanto é envolvida pela melodia das notas pianíssimas e pelos finos olhos do "japa", o "cop" perde a batida por segundos... e a mulher e o amigo para sempre. Todo o cinema de Fuller transpira delicadeza, mas é na mise-en-scène, no diálogo, na luz, no áudio, na decupagem e nos movimentos de câmera dessa magnífica sequência que um dos ápices de seu estilo é atingido, e o milagre, naturalmente, é pintado em um bloco perfeitamente harmônico de imagem/som.

Set-piece number two:
a sequência da luta de kendô. Na preparação, o caucasiano veste sua armadura como lhe ensinou o melhor amigo japonês. Na luta, o complexo do racismo a priori introjetado ocasionam na violência do oriental; e toda a tradição de luta honrada é dinamitada pela aflição de um homem inseguro acerca da aceitação de sua identidade étnica. A sequência que segue vem da fusão do rosto amarelo encapusado seguindo o rosto branco suado e inconsciente. O corpo inquieto do primeiro caminha de lado a outro, projetando no corpo quieto do segundo a sombra de sua angústia. Ele acorda, o derradeiro diálogo é consumado e a imagem do rosto caucasiano é interpretada pela japonês. Fuller nos entrega o primeiro plano da reação para nossa interpretação. Os mistérios psicológicos são interpretados, nunca revelados.

The End: Durante o Festival Nisei a cultura japonesa sobrepuja, na imagem, a americana. A beleza nipônica triunfa. Em enquadramento e beijo final.

Plus: "Love is like a battlefield. Somebody has to get a bloody nose." - nos ensina a velha loba do mar, personagem recorrente nos filmes de Sam, sempre a soltar pérolas de sabedoria.

Mateus Moura (03/05/10)

sábado, 1 de maio de 2010

FULLERIANAS PARTE 5

[Underworld U.S.A, 1960]

Primeiros e primeiríssimos planos de inserção em descontinuidade apresentam rostos suados e machucados de marginais perdidos para sempre em abismos sociais: O Submundo da América é jornalistartisticamente desnudado. Travellings negritados vertiginosamente intensificam o drama da violência humana, a banda sonora explode no contraste em preto e branco. Barroco, trágico, grandioso é o cinema de Samuel Fuller. Entre rostos tão grandes quanto o mundo, sombras tão fugazes quanto a vida, é o punho cerrado da vingança que destrói corações selvagens e sonhos impossíveis. No fim o herói fulleriano morre tragicamente, e a heroína segue, para cumprir seu destino.

Mateus Moura (02/05/10)