segunda-feira, 21 de junho de 2010

Bala na agulha (estenografando sentimentos e reflexões)

1º fato incontornável
Acompanhamos o classicismo de uma forma de expressão narrativa. A Pixar é hoje, industrial, ética e artisticamente falando, a mais bem sucedida empresa cultural do mundo.

2º fato incontornável
A verdade dos sentimentos só se expressam com a plenitude de suas potências através da beleza.

Toy Story 3


No lírico começo do fim, enfim adentramos completamente a mente de Andy - e a essência da Pixar - : o imaginário lúdico infantil. Reacompanhamos a brincadeira que entramos em contato do lado de fora há alguns anos atrás, mas agora de dentro. Somos jogados no imaginário infantil de fato, em toda a sua maravilhosa existência. Asas à imaginação, ao infinito e além... é o começo da última aventura de uma fase da vida de todos aqueles personagens, humanos e brinquedos.
"Toy story", como o título já diz, é uma estória de brinquedos. E é inteligentemente se compreendendo enquanto limite (liberdade) que a obra se permite os mais altos vôos. Woody e Buzz são brinquedos, não humanos. Não compreendemos enquanto experiência as visões da Senhora Cabeça de Batata, apenas nos encantamos com aquela outra forma de percepção (inventada). Toy story fala da humanidade sem dúvida, mas fala além, cria outro conceito, fala da "brinquedidade". Acompanhamos a perda da inocência de Andy, presente na vida de todos, com momentos simbólicos até parecidos (como a doação dos nossos brinquedos), mas se nos emocionamos com a triste estória do urso Lotso não é porque compreendemos como humanos a questão do abandono, mas porque compreendemos como brinquedos. As reflexões sobre a morte também não são humanas, o Inferno que Dante uma vez descreveu, na mitologia brinquedícia vira o lixão, numa das sequências audiovisuais mais belas da década. A seriedade com que este universo é animado (digo "animado" no sentido mais essencial: de dar alma ["anima"] ao inanimado), é inegável. Cada sequência é uma avalanche de beleza e significações que pretendo revisitar em momentos em que eu dispor de mais tempo para escrever com mais calma.

Faço correndo esse texto porque também não poderia passar em branco o primeiro contato...


Mateus Moura

domingo, 13 de junho de 2010

Quem diabos é Apichatpong Weerasethakul?

Perguntas que grandes pensadores de cinema já fizeram são reformuladas audiovisualmente por Apichatpong Weerasethakul:

O que se colhe na seiva do plano em fluxo de duração? Para onde se “diremociona” o olhar no recorte do retângulo que liberta o mundo no limite da ficção? Por onde sonham os nossos sentimentos no contato especial com o inefável? Como ultrapassar os signos e atingir as coisas? Como atingir a superfície (o sagrado)? O que filmo: a trama que se escorre em primeiro plano ou as árvores que balançam em segundo plano; eu olho tudo ou tudo me olha? Como oferecer uma vivência mística audiovisual para o meu espectador?

Para que serve mesmo o raccord, qual o seu potencial? O que se pode fazer com a inescapável elipse mesmo, qual o seu potencial?

Filmo seres humanos, corpos que se movem; filmo animais, corpos que se movem; filmo vegetais, corpos que se movem; filmo imagens irreais, efeitos que animo; filma a vida e a minha imaginação; filmo o mundo então?

Se não dá pra filmar a essência, só nos resta o essencial.

Plano do seu segundo longa-metragem Blissfully yours: a vida como ela é...

Mateus Moura.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Concordemos, a Argentina tem uma seleção e tanto

Liniers


Kioskerman


Quino

p.sI: clique nelas para vê-las em formatos maiores.
p.sII: eu vou torcer pro Brasil na Copa, e você?

Mateus Moura.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Era uma vez...

[Era uma vez em Tóquio. 1953. Yasujiro Ozu]


Presença, Ausência, Vida, Morte, História, Cotidiano, Caos, Vazio, Corpo, Espírito, Palavra, Silêncio, Imagem, Elipse. Intervalo. Intimidade, Distância, Psicologia, Metafísica, Sentimento, Sensação, Memória, Fenômeno, Gesto, Objeto, Verdade, Mistério.

O que escapa de Yasujiro Ozu? O que ele nos diz é que tudo escapa de Yasujiro Ozu.
Há os que não vêem nada no cinema de Ozu e há os que vêem o nada. Questão de exercício do olhar e do espírito.
O cinema está lá, e é tudo.

Mateus Moura.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Hitchcock na essência do mundo


Janela indiscreta é a obra-prima de um gênio no ápice de sua criatividade e rigor. Recheado de cenas antológicas e ontológicos, é um dos filmes da minha vida. A apresentação dos personagens já basta para colocar o cineasta inglês onde ele merece, e onde está hoje: num trono da casa chamada cinema. As cenas antológicas são aquelas que vão para a antologia do cinema, as ontológicas são aquelas que pensam o cinema em sua essência.
Jeff (incorporado por James Stewart) é o fotógrafo aventureiro que sofreu um acidente de trabalho e está confinado três semanas numa cadeira de rodas de frente para a sua janela, que tem vista para a vizinhança (ou em outras palavras: o mundo). E a primeira cena antológica do filme vem na apresentação estritamente áudio-visual da situação deste personagem. Em travellings Hitchcock nos diz tudo sem uma palavra. Mais tarde ele explica com palavras o que aconteceu. Questão de prevenção com o público desatento, afinal, para Hitch, perder o espectador por incompreensão intelectual do enredo é a morte do seu projeto. Tudo é preciso estar claro para o espectador, é a manipulação das emoções o jogo mais prazeroso para esse cineasta; se o espectador está perdido tentando decifrar o que não entendeu consequentemente perde o máximo que a cena que se transcorre pode oferecer emocionalmente; perde a identificação inconsciente com o personagem, perde a sensação universal da angústia, perde, em suma, o suspense. Alfred Hitchcock foi vanguardista do cinema clássico; experimentava como ninguém, mas tudo a favor da construção dramática da narrativa.
Uma cena ontológica, não obstante, ocorre antes da primeira cena antológica. Durante os créditos assistimos as persianas sendo recolhidas e a grande janela enquadrada enquanto passam os créditos. Nos diz Hitchcock com imagens que acabou de ser escancarado para nós, peeping toms (ou: espectadores), o mundo da ilusão – aquele que enxergamos com os olhos (o cinema, mas também nossa própria vizinhança). Mas esse mundo (que é o mundo mesmo, enquanto construção cósmica inteligente), será mediado por um fotógrafo, que o vê, mas que o ‘enxerga’ através de lentes, o completa através da imaginação. Seria Jeff alter-ego de Alfred Hitchcock - cineasta? Não confundindo autor com narrador, acredito que o personagem é no mínimo símbolo dos espectadores que vivem a aventura de produzir imagens, além de apenas observá-las.



A aparição de Lisa Fremont (a mulher mais linda do mundo: Grace Kelly) é a segunda cena antológica. Das trevas surge um fantasma, no big close-up o anjo, no rosto do herói que dorme a sombra, no slow-motion o despertar num beijo erótico de cinema. Inefável.

Todos nós que temos o sentido da visão vemos o mundo de uma forma única, através dos nossos olhos (as tais “janelas da alma”). O que Hitchcock propõe a si mesmo em Janela Indiscreta é a materialização desse mundo subjetivo e sua apercepção. O que seria um brainstorm vira um filme impuro de dois gêneros. O cineasta das massas emociona com o filme de mistério e entretém com a comédia de casamento. Nesse ínterim filosofa por um viés transcedental o cinema enquanto registro físico-poético da essência do imaginar, sócio-psicanalisa com humor as relações amorosas e as neuroses masculinas e femininas de seu tempo, dialoga metalinguisticaironicamente com a História do cinema e dos gêneros de que se serve e capta com a câmera os mais belos quadros de amor e medo de sua prolífica carreira artística. Nem mil palavras por imagem podem descrever todas as dimensões de Janela Indiscreta.

Com o cinema (e a arte em geral) aprendemos a viver. Após assistir os personagens e suas ações, refletimos as nossas, os nossos. Jeff e Lisa divagam seus problemas conjugais a partir das análises de cada janela, como se cada uma fosse um canal onde se propõe uma forma de espetáculo da vida. Eles, como nós, teriam de escolher qual se acostumar e seguir. Afinal, constituir família pressupõe um script social, assim como viver uma vida de aventuras parece não permitir confortos como o “happy end” ou o sexo ao som de violinos. Hitchcock acredita, como Sigmund Freud e Jean Renoir, não apenas que vive na “sociedade do espetáculo”, mas que a sociedade em si (qualquer que seja e cada qual com suas convenções) encerra em sua essência a idéia do espetáculo, cabendo a todos nós ocupar um papel, e representá-lo.

Um filme de montagem & mise-en-scène & enquadramento & movimento de câmera em uníssona unidade artística, em zênite estilístico. Cada sequência é um tratado misterioso, cada quadro uma forma lapidada da naturalidade da criação em estado de graça.

Ja tinha escrito sobre o filme em outra ocasião aqui no blog (http://cinemateusmoura.blogspot.com/2009/08/e-so-isso.html). Por hoje é só isso,

Mateus Moura.

domingo, 6 de junho de 2010

Nota e agradecimento à Lucio Fulci

Diferente do que se possa pensar de primma volta, Lucio Fulci – o “padrinho do gore”, “mestre do macabro” – não fez grandes obras apenas no gênero do Horror. Passou por vários sub-gêneros tipicamente italianos, incluindo algumas comédias com Totó, uns musicarelli, uns spaghetti westerns e um filme de época. Como Howard Hawks, Fulci não se adequava aos gêneros, os gêneros é que se adequavam ao seu touch. A decantação era através do espírito e da força criativa, inigualáveis nos quesitos da ousadia iconoclasta e do vigor artesanal. Cinema de autor fazendo cinema de gênero, a caligrafia do sangue na beleza da língua. Dois filmes não tão comentados do maestro italiano são senão “obras-primas” algum outro conceito mais amplo e que foge de quaisquer aspas. O spaghetti western Le colt cantarono la morte e fu... tempo di massacro é, como o filme de época Beatrice Cenci, o que os cinéfilos costumam chamar de “uma surra de cinema”. Ironias à parte – já que falamos de um grande cínico – é em cenas justamente de porrada que o gênio de Lucio Fulci se impõe com a violência poética típica dos de sua estirpe. Num saloon ou numa masmorra, com armas ou cachorros, a ousadia do italiano não tem limites, e a sua competência atinge a perfeição na virtude da invenção. É em momentos como a hora e meia que passei ontem assistindo Beatrice Cenci que a força do cinema me espanca a cara e me enche os olhos. Obrigado Lucio Fulci.


Mateus Moura.