terça-feira, 31 de agosto de 2010

Caminhemos para que um dia possamos andar

"Louco, para ele a vida não valia nada
Para ele a mulher amada era seu mundo."


Que se foda o bom senso, a minha relação com as obras de arte são, acima de tudo, sexuais. A minha intimidade com algumas é tão grande que todos os sentimentos mais viscerais, naturalmente, afloram: superproteção violenta, adoração fanática, saudade desesperadora, Lucidez, Amor. Banalizar, a base de preconceitos, uma bela e honesta construção artística de animação na minha frente, por exemplo, é como dar um beliscão na cara da minha mulher. Infelizmente a minha educação emocional latina não harmoniza com o silêncio da paciência. A metodologia aplicada é antropologicamente clara e direta: Eu saio na porrada. É inevitável, é a desgraça do apaixonado. E como não me interessa o contato físico com qualquer um, escolho a arma da palavra, mais higiênica e consequente.
É fato. 99,9 % dos críticos de cinema – atenção, não estou falando do público em geral... – não sabe por onde passa a arte da animação. E este parece ser o ritmo natural das coisas... 99,9 % dos críticos literários também não tem a menor noção do que são as histórias em quadrinho. Culpa, não da indústria cultural, mas do ingênuo – porque alienado, quando se crê desalienado - olhar que se dirige aos produtos que dela nascem.
O termo “senso-comum” é comumente utilizado nos discursos insuflados dos elitistas para estabelecer sua diferença com o gado. Se termos psicanalíticos como “neurose” e “inconsciente” estão à disposição de qualquer um hoje, se são uso do senso-comum, deve-se não desesperar porque tais saberes foram ‘banalizados’ (!), mas celebrar a multiplicação dos pães.


É no lírico e monstruoso início do filme de classe Z Female Vampire, de Jess Franco, quando Lina Romay surge das brumas do desconhecido vestida de capa, coturno e cinto pretos, e a câmera adentra seus poros sedentos do desejo mais puro que sabemos que a Poesia só vem de um lugar: do coração dos artífices.
“Anyone can cook”, diz o eterno cheff Gusteau ao ratinho Remy em Ratatouille, numa das maiores obras de arte deste século. A culinária, uma arte que lida com tato, visão, paladar e olfato, memória, novidade e montagem, e que talvez seja a segunda maior de todas as artes (só perdendo para o sexo), é, falando de senso-comum, muitas vezes conscientemente esquecida como tal. Na subida (só possível no universo da animação) pelos caminhos de um roedor, dos esgotos obscuros da solidão à liberdade das luzes da cidade dos sonhos, contemplamos a maior apresentação audiovisual de um cenário (este totalmente irreal) desde Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone. É com Gusteau, gordinho como o cheff Alfred Hitchcock, o principal diálogo deste ratinho sonhador; é com Walt Disney, Winsor McCay, e outros sonhadores e criadores de movimento em mundos de linhas e cores o principal diálogo de Brad Bird e seus companheiros da Pixar.
Através da sinestesia das cores palatáveis em fogos de artifícios computadorizados Brad Bird, através de Remy, tenta explicar ao glutão Emile a beleza de simplesmente experimentar novos sabores. No início de Bastardos Inglórios, outra obra-prima deste século, há um momento ápice no diálogo travado entre Hans Landa e o fazendeiro francês em que o “jude hunter” fala, fazendo uma alegoria para complicar com o fato social da caça aos judeus pelos nazistas, da anti-natural aversão dos humanos aos ratos.
É anti-natural a maioria de nossas aversões e preconceitos, sejam raciais, sociais, econômicos, geográficos, artísticos. Se é de simpatias que se constrói uma personalidade, que ela seja sempre revista, auto-criticada, exposta às fagulhas da nossa mais pura lucidez.


Para Ego provar do mais belo prato foi preciso que o rato se travestisse de humano, contrabandeasse sua arte por debaixo dos panos. Iludindo as pré-concepções invadiu o paraíso, plantou a macieira e colheu maduro. Às vezes é preciso ser serpente para seduzir os que tudo já cobriram com seus véus de certeza.
Em 2011, o grande projeto de um movimento de jovens que já transcende a sigla APJCC é levar à discussão os mais vilipendiados suportes quando se trata de expressão artística: discutir as histórias em quadrinho, a animação, a televisão e os jogos eletrônicos interativos, sempre por apaixonados – por tais objetos e pela Razão – é o objetivo, humilde e violento, de desgraçados em busca de comunhão.


“O maior vilão é a neblina”, diz Lionay Dias sobre o espectro de visão que assola o senso-comum acerca do fantástico universo do vídeo-game. Murilo Coelho já falava faz tempo do “cancro estético”, onde são embalsamados os olhos acadêmicos, do “funil”, seja ele qual for, em que se colocam muitas vezes as autônomas obras de arte. Cauby Monteiro sempre alertou acerca da “viseira”, que impede a visão “scope” dos faroestes mais revolucionários.
A preocupação sempre foi de ordem patológica; a profilaxia não através da farmacologia, mas da enteogenia.
Carregamos a neblina e o vento, o vilão e o homem, a travessia é percorrida pelos sentidos, em direção aos objetos; que a estrada criticamente seja perseguida enquanto percorrida, para que caminhemos como o peregrino, enquanto o artista, errante, erre, e o senso-comum, andante, ande.
Caminhemos pois, para que um dia, sem muletas, essas artes possam voar.


Texto: Mateus Moura.
Imagens: Mateus Moura e Lionay Dias.

sábado, 28 de agosto de 2010

Técnica e Estética

[Sobre cineclubismo]

As duas palavras do título são, talvez, as mais sub-interpretadas que conheço.

‘Estética’ é palavra alienígena no senso-comum, por muito tempo achei que quando falavam dessa coisa aí se referiam aos cosméticos e à beleza da pele. À “beleza da pele” até tem a ver conotativamente, já que a pele é o maior órgão do ser humano e a estética o maior da obra de arte. Pra ficar simples – porque de fato o é – estético é sinônimo de artístico, aquilo que é estético é aquilo que busca o belo (o que é o ‘belo’ sendo uma discussão bem mais complicada e diferente a cada obra e a cada propositor). A estética nos chega ao espírito, no caso do cinema, através dos olhos e ouvidos; é a chamada “estética cinematográfica”. Apreendemo-la sensivelmente, mas sua natureza é espiritual. Também é chamado de Estética a ciência que estuda o belo. A ciência trabalha com o discurso lógico-racional, sua metodologia é a das análises; no caso, fazer uma “análise estética” seria construir um conhecimento, através de uma análise lógico-racional, das proposições referentes à questão estética de um objeto.

‘Técnica’ é a parte material, prática, tecnológica, um conhecimento que pode ser adquirido por qualquer um que se proponha a apreendê-lo.

Comparando à linguagem escrita, a técnica seria a língua – instituição convencional da linguagem - que está ao alcance de todos, enquanto a estética seria a poesia – aquilo que ultrapassa o convencional.

Um travelling, por exemplo, é um elemento técnico que está à disposição de qualquer pessoa que tenha uma câmera qualquer e possa se movimentar, a pé ou de cadeira de rodas. Se tecnicamente falamos de um movimento de câmera onde a base se move em Luchino Visconti o chamamos de travelling, se esteticamente compreendemos, contemplamos talvez os maiores sentimentos estéticos (artísticos) de solidão do século passado. Abro um parênteses: (“sentimentos estéticos” são diferentes dos “sentimentos emocionais”, apesar de o conterem em certa instância. O sentimento do “horror estético” de ver uma cabeça decepada num filme é bem diferente de vê-la no dia-a-dia).

Muitos são os que confundem e atrapalham os tais conceitos de ‘técnica’ e ‘estética’, acreditam que a discussão estética de uma obra da sétima arte é pura perda de tempo. Pois a importância enquanto obra artística não estaria na discussão de elementos técnicos como o movimento de câmera, a montagem, a cine-encenação, o som ou o ponto de vista.

E, realmente; ficar apontando “isso aqui é um travelling”, “isso aqui é uma panorâmica”, não é nada profundo. Mas é tal como no abecedário, temos que aprender o bê-a-bá para um dia poder gozar um grande poeta. E não é dever do cidadão aprender a língua, mas é direito do mesmo ter o acesso. E com o cinema deve ser igual.

Sirva-se; e crie.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

FULLERIANAS PARTE 6

[Pickup on South Street. 1953. Samuel Fuller]

O cinema enquanto recurso pedagógico... vamos lá.
A melhor ilustração do espírito fulleriano didaticamente se encontra esmiuçado pela eterna Moe, no noir Pickup on South Street. Na magnífica aparição dessa personagem, a testemunha ocular da batida de carteira no metrô, em sua tentativa de começar uma descrição do delinquente com a convencional descrição fisica anatômica, é logo interrompido em grande estilo pela delatora.
"-Altura mediana? Que me importa se é alto, baixo, gordo, magro, existem milhões por aí... Descreve como ele fez, eles são conhecidos pela técnica, cada um tem a sua...". Numa encenação de gestos e dialeto fora de série, Moe fala do herói do filme, mas poderia muito bem estar falando do herói que dirigiu este filme. Nesse complicado submundo que se chama Hollywood, Fuller é o maior e mais visceral contrabandista. Nesta seara dos "pickpockets" do cinema, cada qual tem um estilo. E no fim é isso o que realmente conta, isso é que diferencia chicos de franciscos:
O modus operandi.
E já que a repetição é a pedagogia do sábio, e o negrito o travelling frontal:
O modus operandi.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Testemunho sobre a Mostra Novo Cinema Paraense

Não existe “cinema paraense”, mas cineastas que residem no Pará, e fazem cinema.

“Chega de igreja!”, bradou Priscila Brasil. Marcelo Marat concordou.

Vivenciei nesses últimos 3 dias o que denominei de “a maior fagulha de clareza coletiva de cineclubismo desse ano”. Da polêmica que antecedeu o evento sobrou apenas a batalha saudável de idéias. Foi quem queria realmente contribuir para a discussão. Natural e harmoniosamente, conclusões coletivas restaram lado a lado às discordâncias individuais. O que prevaleceu não foi nem a discussão sobre o “novo”, nem sobre o “paraense”, mas sobre o CINEMA.

“Não existe o cinema paraense”, disparou Nilson Bala. E nessa hora senti uma pontada na nuca, me lamentando termos perdido nome tão interessante para a Mostra. Entretanto, o nosso título não perdeu a realeza de seu significado profundo: o “Novo Cinema Paraense” seria sobre os últimos filmes aqui produzidos, mas, sobretudo, sobre uma nova consciência acerca desse tal cinema, construída através da discussão. Enquanto o filme trabalha o inconsciente coletivo, o cineclube trabalha com o consciente coletivo. É o apagar e o acender das luzes. O “Novo Cinema Paraense”, logo, não se configura numa tentativa de rotulação, mas de provocação.

“Espaço democrático horizontal expressivo intelectual”, nunca esses pleonasmos todos fizeram tanto sentido. Todos estavam à vontade: espectador, cineasta, crítico, produtor, ator, cineclubista, claquetista, filme. Ao invés da busca de uma identidade regional forçada e demagógica, tudo foi espontaneamente analisado através da sede de conhecer profundamente os objetos. Concluímos que é inegável a excelência cine-criativa de Marcelo Marat, Priscila Brasil, Márcio Barradas... A crítica – decidiu-se – deve ser sempre construtiva. O artista – vislumbrou-se – sempre livre.

O artista é o que não tem medo de errar. Se errar é humano e perdoar é divino, que Deus nos perdoe por sermos errantes. “Viver é perigoso, e é preciso ter coragem”, disse Rosa. Encarar a frio e sem desassossegos grandes as coisas todas que balbuciamos sobre é a grande sabedoria dos diálogos à luz da razão. Não é nada demais a arte, a crítica, a contemplação estética, a denúncia social; não é nada mais do que só tudo isso. O que aprendo no contato com o outro é essa troca, esse quinhão de conhecimento solidário.

Logicamente, esse não é um texto definitivo sobre o que aconteceu nos dias 4, 5 e 6 de agosto de 2010 no auditório do IPHAN. Menos ainda o texto oficial da avaliação do INOVACINE sobre a Mostra.

Não é nada mais que um testemunho pessoal.

Mateus Moura.