sábado, 30 de outubro de 2010

Texto de Marcelo Marat sobre D.Juan

À caminho de casa me vieram algumas impressões – antigas e novas – sobre D. JUAN, O FILME. Primeiro, como roteirista, fico intrigado pela escolha em inverter o papel de D. Juan: o conquistador sente-se ameaçado quando a mulher que pretende conquistar revela-se não a vítima submissa, mas a predadora. Se a personagem mantém suas características cínicas, o ator que o interpreta sente-se ameaçado, inseguro e curiosamente redimido: D. Juan vai para o inferno, mas ele é santificado pela mulher ao mesmo tempo santa e vampira.

Na montagem, o ritmo das imagens torna-se exato justamente para mostrar essa relação, a forma como se constrói a ligação entre os dois, desde a primeira vista, passando pelo primeiro contato no exercício teatral até o choque da descoberta dessa mulher – e desse homem. Os atores constroem isso de forma bastante sutil, com expressões precisas, bem marcadas, ele ora confiante, ora assustado, ora inquieto, buscando identificar nela uma reação que a explique e devolva a ele o controle. Mas ela não revela nada. É uma esfinge, um enigma. Vemos isso em três momentos: na abertura, em que o que se vê dela é apenas um detalhe; na definição dos personagens, em que ela não demonstra qualquer emoção; e na cena em que ela está sentada com o rosto oculto pelos cabelos.

Penso que o filme evita um de meus defeitos na montagem, que é a onipresença da música como moldura para as cenas. Em D. JUAN a música só aparece no momento certo, tanto que às vezes levei um choque, pois me habituava ao silêncio em algumas sequências. Acontece o mesmo quando a ação é centrada no ensaio das falas, e há uma quebra do plano fixo que se mantinha por bastante tempo, e então a câmera “dança” em torno do casal, numa vertigem, para a cena perfeita do beijo.

Esse cuidado com a montagem mostra, para mim, a valorização da imagem, que afinal é a essência do cinema. As imagens foram pensadas no filme para instigar o espectador, para inquietar e não deixá-lo acomodado. Como linguagem (comunicação de mensagem), o filme só se completa com essa visão não passiva, quando cada espectador vai entender esse romance entre atores e personagens, nos dois ou três níveis em que se passa a narrativa (realidade e ficção; um filme sobre uma peça que será o filme) da forma que lhe for afim. No meu caso, vejo como uma parábola freudiana sobre o medo da castração, um exercício metalingüístico entre cinema e teatro, uma experimentação totalmente subjetiva na linguagem do cinema.

E pouco importa se às vezes a sombra do câmera aparece em cena, se as regras acadêmicas são quebradas aqui ou ali. O respeito pelas imagens fica evidente no resultado final: é bom cinema, feito com tesão por essa arte ainda tão nova, com um prazer que passa para quem assiste – especialmente para quem assiste e realmente curte cinema.

Eu fiquei nervoso antes de ver o filme porque tinha medo que o resultado fosse decepcionante – e se fosse ruim, se eu não gostasse, diria isso com todas as letras, como sempre faço com conhecidos, nas diversas linguagens artísticas em que eles trabalham. Aliás, como fiz em relação à cena do microfone, que é a única parte que eu não gosto. Eu tiraria o rapaz com o microfone daquela sequência.

Felizmente – e que alívio! – o resultado foi ótimo, tão bom quanto eu esperava e queria que fosse. Entendi melhor o filme ao revê-lo. E gosto mais cada vez que vejo. Caras, deu certo! EVOÉ! Quero ver o próximo. Quero fazer um. Tomara que outras pessoas também queiram, e percam o medo e façam e mostrem seus filmes. Nós, pobres mortais presos nessa cidade-inferno, tão medíocre em iniciativas culturais, só temos a ganhar com isso.

Marcelo Marat.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

“e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ (...) ‘estamos indo sempre para casa’”

Como toda boa série sobrevivente o primeiro episódio de Anos Incríveis contém a essência de todo o seu projeto. A diferença essencial, entre esta e as outras séries, é que em Anos Incríveis tal episódio atinge o status de obra-prima. Convenhamos, Anos Incríveis não é qualquer série.

Começa.

A voz rouca de Joe Cocker brada o refrão imortal de With a Little Help From My Friends (hino máximo de sua era) e acompanhamos uma sequência de imagens domésticas de uma família de subúrbio americano. Abruptamente seguem-se turbulentos e frenéticos flashes de imagens de noticiário do ano de 1968. A idéia é: durante 5 anos acompanharemos a História e a Estória, o macro e o micro, o coletivo e o pessoal. A voz que nos conduz, através do tom das memórias, refletirá nostalgicamente os anos (incríveis) de sua infância: um irmão mais velho insuportável, um pai amedrontador, uma mãe conciliadora, um melhor amigo inseparável e, claro, a menina dos olhos da vizinhança.

O que aconteceu no ano de 1968? Se você perguntasse a Kevin Arnold – ou a qualquer outra criança de 12 anos que vivia em um subúrbio americano – ele diria que Denny Mclain [jogador de baseball] ganhou 31 jogos, ou que o Mod Squad [série de TV] era um sucesso, etc. É claro que o ano de 68 também foi o ano da morte de Martin Luther King, da Guerra do Vietnã e do impeachment de Nixon, mas falaremos disso depois.

Falemos agora de outras coisas mais urgentes.

Maldizem por aí a TV - suporte nascido nos anos 50 - por ela reciclar toda a linguagem cinematográfica construída em mais de 50 anos. A pergunta cabal é: E daí? Afinal, o que fez o cinema senão reciclar linguagens construídas há milênios? Toda nova arte é uma fênix, nasce das cinzas de suas primas; todas vieram do mesmo pó, e todos ao pó retornarão. Toda prole, aceitemos ou não, relembram os traços de seus pais, porém cada impressão digital contém um desenho. O travelling, que vai se colorindo para se encerrar num close de um menino aflito para alcançar a bola de football numa rua qualquer de um subúrbio americano, é uma das mais belas apresentações de personagem, não apenas da TV, mas de toda a linguagem audiovisual. Marlens e Black se apropriam da decupagem clássica, construída por Griffith, Murnau, Ford, Leone; e assim como Murnau bebeu de Griffith, Ford de Murnau e Leone de Ford, o casal sacia-se na fonte, e como Murnau, Ford ou Leone, criam o novo: falemos de obra, e de lógica interna. De ferramenta, e de seus limites: se a tv não tem o tom épico do cinema, o cinema não tem a tom minimalista da tv. Contar uma estória audiovisualmente com o mínimo, atingir a economia, apenas o estritamente necessário - não confundir com a humildade, a busca humilde. O estilo de Anos Incríveis, por se tratar de obra audiovisual, se evidencia na construção dos sons e imagens! Todo ele já presente e vibrante no episódio-piloto: a inserção das imagens domésticas na construção mnemônica dos sentimentos familiares, o poder atmosférico da cultura (da moda, das canções, do contexto político) e sua presença nos corpos, a mise-en-scène seguindo sentimentalmente o nível de percepção do mundo de seus personagens, o acompanhamento psicológico do crescimento destes seres e, lógico, a inigualável força poética da narração em primeira pessoa sob o tom lírico da busca de um tempo que se perdeu. Pois se, acima de tudo, Anos Incríveis é um série de sensações mais que de fatos, é porque não acompanhamos os fatos, mas a imagens (impossíveis) que brotam desta narração – subjetiva por excelência.

Diante de tamanha potência narrativo-imagética, a cada episódio que assistimos de Anos Incríveis, surge a pergunta: afinal, o que representa a TV dentro do universo audiovisual? Assim como já aconteceu com o cinema, a TV é considerada a prima pobre ou, ao contrário, a prima rica, a fútil que só quer saber de ganhar dinheiro. Partindo da idéia de que pouco importa para a Arte da onde ela tenha vindo, ficamos com uma questão central dentro da discussão: qual a diferença entre cinema e TV? Seria o caso de considerarmos como maior diferença não a linguagem (pois se trata do mesmo audiovisual do cinema), mas de circunstâncias de produção. E no que diz respeito a essas circunstâncias, a TV tem muitas particularidades: o “dever” de “agradar” o público, a produção semanal de episódios (no caso do seriado), além da eterna ameaça dos índices de audiência que dão palavra final sobre a sobrevivência ou o extermínio de um programa de TV são algumas delas.

Anos Incríveis se dá neste ambiente, e ao invés de Carol Black e Neal Marlens (criadores da série) ficarem reclamando para si o status de “cinema na TV”, eles extraem da simplicidade estética (e lembremos como é difícil alcançar a simplicidade!) e da narração a longo prazo, que quase sempre permeia um seriado, os momentos sagrados da epopéia de um garoto de 12 anos que todos nós fomos. E a que estamos nos referindo quando afirmamos que os criadores desta série não reclamam para si um status de cinema? É que em Anos Incríveis não existem referências a grandes obras cinematográficas que exerçam a função de legitimar a série como obra séria: tratam-se de ressonâncias de uma cultura audiovisual que Black e Marlens compartilham e que são evocadas sempre que podem contribuir para a construção do universo proposto. John Hughes, Martin Scorsese e Charles Chaplin não são simples notas de rodapé a serem consultadas por Black/Marlens, o casal de roteiristas e produtores da série é acometido pela mesma paixão da qual esses outros gênios sofreram: a necessidade de transformar seu coração em imagem/som.

Afinal, o que aconteceu no ano de 1968? Se você perguntasse isso ao público que acompanhou Anos Incríveis a resposta certamente seria que Brian Cooper estava morto, e que Kevin e Winnie tinham se beijado pela primeira vez. É claro que é o ano da morte de Martin Luther King e da Guerra do Vietnã, mas para um certo garoto, morador de um subúrbio qualquer, do alto dos seus incríveis 12 anos de idade, esses fatos não eram, de forma alguma, menores do que o seu primeiro beijo e a morte do cara da sua rua que definia o que era ser “cool”.

Entre 1988 e 1993, toda semana, lares ao redor do mundo eram invadidos por um dos maiores épicos já empreendidos pelo audiovisual. Ao (re)visitá-lo mais de 20 anos depois, um prazer se sobressai: o de estar vivo. Anos Incríveis é uma escola, um documentário, uma roda de amigos, um colo de mãe, um lar.

Relaxemos, e aprendamos.

Mateos e Felipe Cruz.

p.s: texto escrito para a estréia do Tv Clube.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Amanhã, a estréia oficial do D. Juan


Sinopse:
O encontro de lobos.
O homem é lobo do homem.
A mulher é loba da mulher.
A ribalta é a lua cheia,
onde o encontro das bestas será aceito.

Informações Técnicas:

Filme rodado nos dias 27 e 28 de julho de 2010 pela produtora independente Sr. Cheff Produções. Contou com o apoio da ETDUFPA (que cedeu o local de filmagem, com iluminação), o CEPEPO (que cedeu a câmera e os cinegrafistas), a MTV BELEM (que cedeu o microfone), a PARACINE (que bancou a alimentação) e a SINTDACPA (que cozinhou de forma admirável).

D. JUAN

Título: D. Juan
Realizador: Mateus Moura
Assistência: Felipe Cruz
Produção: Sr. Cheff Produções
Atores: Ramón Rivera, Giovana Miglio, Haroldo França, Felipe Cruz e Mateus Moura
Música original: Ramón Rivera
Trilha sonora, montagem e fotografia: Mateus Moura
Figurino: Cassiane Dantas
Duração: 33 min
Formato: 16:9 & 4:3 / Cor / Digital



Parte da equipe de Produção
Sr. Cheff Produções é:

Mateus Moura
Felipe Cruz
Luana Beatriz
Luah Sampaio
Juan Pablo
Samir Raoni
Janaína Torres
Glenda Marinho
João Pedro Rodrigues
Neto Dias
Cassiane Dantas
Max Andreone
Giovana Miglio
Ramón Rivera
Haroldo França
Harrison Lopes
Vanessa Silva


Serviço:

27/10 (quarta-feira)
Em 2 sessões: às 19h e às 20h
No Teatro Cláudio Barradas - Tv. Dom Romualdo de Seixas, 820
Entrada franca.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Esses viados são uns filhos da puta! (e Viva Nossa Senhora de Nazaré!)

[Ópera Profano. Dramaturgia: Carlos Correia Santos. Direção: Gual Dídimo e Haroldo França.]

Sempre pra escrever de teatro eu penso 2 vezes, não conheço muito da História da Crítica ou mesmo da História do Teatro. Mas decidi pelo menos registrar minha admiração pelo musical (musical!) que assisti na semana passada no Teatro Cláudio Barradas.

Esse blog pode parecer meio machista às vezes, e às vezes realmente o é, mas que fique registrada a minha admiração pelos gays, no campo da arte principalmente, mas também em todos os outros campos. Tem uns viados que são fodas.

O Dirty Harry falava que ele não tinha preconceito: ele odiava todo mundo... ensinou o meu caminho da libertação: Eu, escorpião por excelência, desconfio de todo mundo, sem exceção. Outro dia, de frase em frase, chegou-se no dito, que em breve será popular, de que “toda relação é bissexual”. Duvido alguém discordar – é fato: todo mundo é masculino e feminino.

O OPERA PROFANO só não deve ter os arranjadores musicais de homossexuais – entretanto sabemos que a música é a mais feminina das artes, e como o Ramon Rivera e o Armando Mendonça fizeram uns arranjos geniais, temos certeza que este lado é realmente aflorado neles, são uns verdadeiros sereios.

Não me entendam mal os aponta-dedos da sociedade, não to mal-falando ninguém, pelo contrário, to tentando apenas estabelecer o lugar cínico da arte na guerra dos sexos. A peça é um coração gay (paraense) que transpira e discute sua condição, mas o que me interessa é como isso é afirmado esteticamente.

Quem tentar procurar defeito no OPERA é um enrustido! Um diamante é lapidado a cada ensaio. Diamante concebido por Carlos Correia, dirigido e musicado por Haroldo e Guál, arranjado por Ramon e Armando, cenografado por Nelson Borges, iluminado por Sônia Lopes e encenado por um grupo de atores iluminados.

To falando de inteligência de construção, sensibilidade poética, trabalho coletivo – é quase como o Círio: profano, sagrado, erótico, sublime, vulgar, belo, pesado, leve, tradicional, revolucionário, poderoso, suave - tudo ao mesmo tempo na hora: É uma opera!

Atmosferas.

As cenas cômicas são extremamente bem colocadas (corajosas). Mas foram as dramáticas que me marcaram: o estupro das sombras foi uma das coisas mais lindas que eu já vi, e a mise-en-scène do imenso bloco final me fez levantar da cadeira de tão esplendorosa: o quadro de Baby – o profano ser – nos braços – como Pietá – da escória; a santa com foco de luz próprio em primeiro plano, a entrada da Trindade, o ritual de benção; o que tenho a dizer é uma só palavra: Conseguiram: OPERA PROFANUM.

No epílogo: a navalhada.

Se esse espetáculo não rodar o mundo, ele é realmente injusto. Vida longa...

Mateos.

p.s: 25, 26, 27 e 28 de novembro de 2010 vai ter apresentação...

domingo, 17 de outubro de 2010

Tarantinologia – fatia n°1 e nº2

Ja falei recentemente aqui no blog do meu apreço pela arte da culinária. (http://cinemateusmoura.blogspot.com/2010/08/caminhemos-para-que-um-dia-possamos.html)

O Miguel Haoni recentemente fez uma junção interessante do que o Hitchcock falava acerca das “fatias de bolo” que o mestre filmava, com o Pulp Fiction de Quentin Tarantino. Para ele, o filme que levou o jovem cineasta ao estrelato é algo entre a maionese [de Bazin] e o bolo [de Hitchcock]. (http://apjcc.blogspot.com/2010/10/pulp-fiction-no-cine-ccbeu.html)

Foi ao reassistir o Pulp Fiction na quinta, pela primeira vez em tela grande, que resolvi fazer uma sessão de textos aqui seguindo, de forma análoga, a montagem episódica tarantinesca. Ao invés de falar tudo o que todo mundo já sabe da biografia do cara, ou repetir todo o enredo pra deixar os leitores mais confortáveis eu vou me utilizar da minha incompetência de administrar o meu tempo para ir direto a certos pontos; nem sei se os essenciais, mas os que mais me dão gana de tagarelar.

Sem tentar abarcar o bolo, beliscarei as fatias. Aos interessados...

Tarantinologia – fatia n°1 e n°2

[Pulp Fiction - Butch]

1.

Entre o humor e a ação, uma sequência do mais inocente jogo de amor. A relação entre Butch e Sebastiane é tão puro como aquele longínquo entre Carlitos e a Paulette Godard nos Tempos Modernos – estes também se despedindo estrada a fora, porém de chopper.

A construção toda da cena de apresentação de Fabiane, que evoca também os mais tocantes momentos de Godard ao filmar as relações amorosas entre um homem e uma mulher, é assustadoramente verdadeira e grandiosa em sua realização. Entre a gag inocente do “prazer oral” (e o escovar dos dentes), as brincadeiras inocentes de casal no banheiro, o lento desvelar da beleza natural e inocente de uma linda mulher de camisa e olhar apaixonado, um não tão inocente momento de torpor entre o sonho e a realidade.

É este momento em que Butch acorda que Tarantino decide filmar liricamente, através de zooms... este espaço-tempo mental perifeérico entre o sonho e a vigília, onde tudo é névoa de realidade. De um pesadelo, Butch desperta ofegante. Na tv ligada, cenas de guerra. No banheiro, seu amor escova os dentes. Sabemos já de toda a relação de sofrimento de seus antepassados com as guerras que tiveram que atuar. O som da tv em explosões talvez ecoe as imagens do pesadelo do qual acaba de despertar - e do qual não se lembrará quando totalmente consciente. No seu mundo escroto apenas uma salvação, em forma de mulher – esta que sai do banheiro aflita com o grito de seu amado. Tomamos o ponto subjetivo de vista deste homem, que é assaltado negativamente pela imagem da guerra, positivamente pela imagem dela, até juntar estas duas nessa confusão de sensações – ela vai parar, por acidente de reflexo, dentro da tv (ou mais especificamente, da guerra, ou mais especificamente, do perigo), e o pesadelo de Butch, em vigília ou durante o sono, ganha o seu contorno mais certeiro se afirmarmos que se trata do medo de perder quem se ama, e da responsabilidade que carrega colocando este bem amado em perigo.

Tarantino filma a beleza sexual dos corpos se tocando em gestos de amor e carinho de forma tão sublime e verdadeira quanto as neuroses e medos que advém de tudo isto.

2.

Em outro momento, o cineasta filma o momento de uma decisão difícil que Butch deve tomar.

Sabemos de todo o périplo do relógio, sua estima e o seu valor, e a responsabilidade lhe foi destinada em sua preservação.

Voltando ao seu apartamento para o resgate, uma série de fatos bizarros ocorrem. Entre eles, o seu encontro fatídico e prosaico com Marsellus Walace no sinal de trânsito, que, em luta e fuga pelas ruas, os levam para a única loja que não podiam entrar, onde são “capturados” pelos maníacos sexuais.

No “unidunitê” Marsellus leva a pior e enquanto é currado Butch consegue se desvencilhar das cordas e do escravo sexual e corre porta a fora daquele pesadelo. Na beira da saída, porém, ele pára, e reflete.

Uma espécie de “moral anal” é o que o impede de deixar pra trás aquele soldado, mesmo que seu mais perigoso inimigo. Ele ouviu todas as histórias referentes ao sofrimento de seu pai em alojar um relógio no ânus por anos. A filosofia é maxista por excelência, a defesa irrestrita é a da virilidade e o pagamento àqueles que tem a petulância de violar o santo buraco é a pior das mortes em técnicas de tortura medieval.

No fim, apesar de, durante a revanche contra Zed e seu companheiro, os dois se prostarem várias vezes um atrás do outro com armas fatais (podendo finalizar os seus respectivos “problemas”), ambos, pactuaram, desde sempre, a partir de sua formação cultural, que não se pode atacar outro homem pelas costas, sob qualquer forma ou circunstância. É a lei do Oeste.

Mateos.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Das nuvens etéreas

"Ora, ninguém dá valor a um óbvio não sistematizado" (Renata Negrão)


Meu pai cada vez reclama mais do progressivo esmaecimento da minha didática nos textos que venho fazendo aqui no blog. Como filho teimoso que ele criou, naturalmente, eu replico me utilizando de milhares de argumentos. Às vezes em casa no almoço, me sinto n'As Nuvens de Aristófanes.
Um dos argumentos - e o mais teimoso porém lúcido deles - é a desnecessidade. Não tenho vínculo institucional ou eleitoral: com estes pouco lidos textos não tenho pretensão de sobreviver financeiramente (tutú) ou politicamente (voto). Também pretensão alguma de ser crítico, ensaísta, teórico, cinéfilo, etc... prefiro ser nenhum pra ter liberdade de ser qualquer. Não tenho pretensão alguma; inclusive, e principalmente, a de ser despretensioso.
Além da falta de didática, outro fato incômodo é a subjetividade. Alguém que está falando dos seus amigos e seu dia-a-dia (ou do seu pai) num texto que se pretende crítico sobre arte é como um cineasta falando de natureza humana se utilizando de um papo trivial sobre as características do seu super-herói favorito - quem está acostumado à "aura", ao "museu" e as "grandes artes" com certeza não tem porque levar a sério os textos ingênuos dos apaixonados. Who cares?
Sim sim, é importante o debruçar científico, o conhecimento enciclopédico, mas acredito que esse lugar aqui (a blogosfera) flutua mais solto, longe dos supérfluos.
O blog é o lugar dos amadores, analfabetos, perdedores.
Assino agora apenas Mateos.
Do alto da majestade das minhas nuvens, indigente bloguista na cidade de Belém do Pará.


Mateos.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

There’s no place like home

[Tudo pode dar certo (Whatever Works). 2010. Woody Allen]


Saúdo o novo filme de Woody Allen como saudei pegar um ônibus dias atrás da minha casa para a universidade federal do pará.
Meu amigo Felipe, entre um assunto e outro, dia desses, soltou a tese dele do que seria o “complexo de Dorothy”, e que senti na pele na minha recente mateusséia que fiz de ônibus descendo o país com passadas por Brasília, Minas, São Paulo e Rio. No Mágico de Oz, a menina sai da sua existência pobre, distante e em preto e branco, vai parar, via furacão, num universo maravilhoso, cheio de aventuras e colorido e tudo que ela quer é voltar pra casa.
Meu amigo Miguel, que foi junto comigo e com o Felipe ver o filme (além da Glenda), é daqueles – igual nós – que sabem do que eu to falando quando penso em “prazer espiritual” ao entrar em contato com um filme do velho, ranzinza e pervertido judeu. A comunicação entre nós e esse desgraçado é olho no olho. É como bater um papo com aquele velho amigo; nem PRAZER ESTÉTICO ou CONTATO COM O SUBLIME, nada dessas coisas – To falando de papo – não furado... hahaha... como é bom rir das eternas piadas, dos sempiternos deboches, dos perversos fetiches e outros quejandos. Impecável pode não ser a obra do safado, mas o papo é um bálsamo pra nhaca da mediocridade que ceceia o dia-a-dia.
Ah uma loirinha de calcinha, camisola e meias de ninfeta, um comediante sentindo e refletindo o absurdo da vida, as excentricidades do meio cultural novayorkino, as gags intelectuais referenciais, a metalinguagem auto-depreciativa. Roteiro filmado, programa de tv, stand-up ensaiado. O que Woody Allen quer maquiar? Nada. Ele é o que é, faz o que faz. Gênio? Whatever. Artista? Woody Allen é um velho amigo. Sensível, inteligente, arrogante, criativo e engraçado pra caralho – como todos os meus grandes amigos.
A gente sabe que existem maravilhas naturais pra se visitar, catedrais monumentais pra se contemplar, sensações inefáveis pra experimentar, mas sabemos também da existência do prazer do nosso humilde e honesto lar – pouco importa suas características perante outras em banca de julgamento final.
Como diz o meu amigo Miguel: não se mata fome de amendoim com filé mignon.
Se isso é uma crítica? Um ensaio? Um depoimento? Whatever works.

Mateus Moura.