segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Travessias 2011

Não é simplesmente porque se utilizam livremente das novas tecnologias para construir linguagem que Film socialisme e Pacific são os dois grandes filmes do ano, mas porque nos atualizam imagens da percepção.

Tudo parte da ética. O filme do francês manda pro caralho os direitos autorais e qualquer idéia capitalista de propriedade intelectual de qualquer imagem. O filme do brasileiro pro caralho o roteiro e a direção (apesar dele parecer não se dar conta disso nos créditos). O primeiro, de tão consciente em suas operações, parece atingir o inconsciente coletivo, e o segundo, partindo do inconsciente coletivo (e subconsciente individual), parece nos levar à consciência de compreensão dos engodos (alienantes e/ou maravilhosos) de uma era.

Film Socialisme é extremamente filosófico, filológico, arqueológico, é estudo ontológico de um pesquisador-artista, sobre o cinema em si e sobre a civilização (que produz Imagens – memória – História - segredo). É criação total em todas as fases do processo: do planejamento à adição de imagens de outrem, da gravação à criação de sentidos a partir da montagem. É alquimia constante numa busca incessante, de novo [Godard] ao novo, ao único; de novo extraindo de si (e do ato de produzir imagens) tudo o que se pode extrair (de reflexões, emoções, experimentações, errâncias). Jean-Luc Godard é = a autor audiovisual. Defendeu tal premissa quando crítico e praticou quando cineasta – mais que ninguém. Mas não só de autores vive o audiovisual – e o mesmo sabe disso mais que ninguém -; o audiovisual vive apenas de imagens em movimento. À câmera a cultura é indiferente.

Filmes capitalismos. Os dois estão a bordo, tematizam a Viagem, de como ela transparece uma civilização (da informação, da indústria cultural, do entretenimento, das mídias sociais, da dispersão, do capital). Mas sobre o que versam em essência os narradores dessas Odisséias? Qual vossa Moby Dick? Talvez tudo remonte aos soviéticos: àquele Encouraçado. Eisenstein, Vertov, Kuleshov: o cinema é montagem?

Pacific, enquanto obra, inicia de fato o seu trabalho apenas nessa fase última do que se costuma enxergar de processo cinecriativo. Há na verdade, antes de tudo, uma idéia que impulsiona tudo (o projeto): pedir para os passageiros daquele cruzeiro para Fernando de Noronha, as suas gravações pessoais para a construção de um “documentário” [sic]... a brincadeira mesmo, entretanto, começa na Montagem.

O que é o “diretor”? Se é aquele que limita, que faz escolhas, que represa para que a obra siga o curso que ele acha mais conveniente, pode até ser que Marcelo Pedroso seja o DIRETOR de Pacific, afinal ele fez a escolha de pedir as imagens depois que elas já tivessem feitas, com claras intenções de direcionar o filme para uma estética onde contemplamos uma cinegrafia intuitiva livre de diversas personalidades (crianças, idosos, casados, solteirões) que hoje tem em sua mão – de todos os modelos – essa máquina que grafa o movimento da realidade em um suporte. Entretanto lastimo a chance que o Marcelo, ao creditar-se como "diretor, roteirista e montador", perdeu de dar o valor real para um certo estado de criação amiúde negligenciado... ao meu ver o Marcelo é mesmo o MONTADOR – e isso é tudo! Concordo que se Pacific tem um AUTOR é Marcelo Pedroso, mas o âmago de sua forma provém justamente do fato de prescindir de DIREÇÃO pra existir. “Documentário” também não me agrada... esses termos todos parecem estar caducos demais (há muito tempo)! Foi pela falta de DIREÇÃO e por não ser um DOCUMENTÁRIO que pudemos entrar em contato com um momento cinematográfico tão fascinante na construção de um personagem para câmera como faz o pernambucano fanfarrão, ou um momento de realidade tão fresco quanto a briga das crianças na areia, com o lorinho zombetando sua irmã e o pai a se divertir na câmera, ou a criança “marmotando” com o zoom os pés do vovô, ou ainda a cinegrafia subjetiva do casal apaixonado, exalando amor em cada movimento de câmera ou naqueles planos tão longos onde não se cansam de filmar um o corpo do outro e às vezes pousam a câmera para beijar-se.

É fato, ademais, que um certo olhar deslocou todas essas imagens de seu contexto ordinário e as sistematizou ao seu gosto. E certamente, sem essa intervenção, elas não ganhariam tal estatura significativa (que mais que revelar coisas novas revelam as próprias coisas-imagens). Enfim, tudo apenas milagre da justa-posicação [lembro aqui o "mot juste" Flaubert]. MONTAGEM – não meramente no sentido dos livros didáticos de linguagem cinematográfica, mas no sentido último que Eisenstein desencavou; no sentido mesmo de uma forma como o pensamento age.

Marcelo Pedroso agiu, neste fenômeno cinematográfico, muito mais como agiria o arquétipo do Montador; e provou, que para o cinema existir (mesmo enquanto “obra de arte”), não necessita do Diretor. Que o Embusteiro, necessariamente, não precisa errar pelas estradas para encontrar a criação, mas tão-somente atuar em seu escuro laboratório, decantando em ouro os metais do dia-a-dia.

Existem vários tipos de cinema. O que ficou mais canônico em termos de crítica, glorifica o “auteur” como responsável real do filme e o plano como unidade mínima (logo máxima) da linguagem cinematográfica. Além do “cinema do plano”, há ainda o “cinema do fotograma”, o “cinema da imagem”...

Quem é o responsável essencial de Pacific? Assim como em Film Socialism: a Humanidade – que produz imagens. É essa a luz que encanta as duas personalidades, cada uma ao seu modo;

é ela

que

bruxuleia inconstante, engendra mirações,

segreda mistérios, floreia emoções,

revela vulgaridades,

realidades,

idades,

eternidades,

limites.

E o Cinema é esse monstro maravilhoso que engole todos os saberes e a própria realidade e reflete em luz a projeção de Um inefável.

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Novas formas, enquanto espectador, de vivenciar uma experiência cinematográfica. É à estas obras, hoje, que cito a minha admiração nestes quaisquer textos e rankings, que sugerem, apenas, ao outro que compartilha atenção, um olhar a mais. Em 2011 foram, além destes dois, Cópia Fiel do Kiarostami, Tio Boonmee do Apichatpong, Árvore da vida de Malick, A fuga da mulher-gorila de Felipe Bragança & Marina Meliande e Os monstros dos Irmãos Pretti & Primos Parente.

p.s: se esses textos que balbucio parecem um pouco distantes das maravilhosas convenções de coesão límpida + metáforas claras + argumentação silogística + afirmações categóricas, admito que é por falha minha. É que in-voluí: deixei a volição de espetáculo pra ensaiar somente. Do jogo é buscado um pouco além do elo com o devir; e dessa escassez fagulhas (à prova de pedra). A obscuridade significativa à clareza explicativa. É questão de búfalos à noite, em lugar de touros pelo chifre. Da respiração tem vários exercícios...

Mateos.

Um texto como sinto a forma de Totoro

A arte (da animação) de Haio Miyazaki é a prova universal irrefutável de que o espírito é mais essencial que o corpo, de que a beleza numa figura animal (motor + instinto / inclui-se o humano) provém principalmente de seu movimento (Graça) e de que a criação é o caminho mais óbvio ao primeiro.

Criar o novo é um pleonasmo retórico que Haio Myiazaki serenamente desdenha, o Animador reconhece que a eternidade se encontra precisamente quando se cria o antigo. Não obstante, do incidente da personalidade, naturalmente refratam-se formas únicas. Nelas há, ordinariamente, a expressão. Essa expressão, para este artista, é o resultado de uma brincadeira que ele pinta com acuidade perfeccionista. No seu embornal de cores todo o espectro cósmico ulterior: Vontade, Amor, Necessidade, Liberdade, Sonho, Inteligência, Justiça, Cultura, Natureza... ele parece ser um dos poucos que realmente enxergam/traduzem fagulhas do Mundo (a totalidade das coisas). Suas obras parecem sempre conduzir-nos, como num sonho alquímico, a esse incêndio chamado Imaginação.

A poesia, ou a construção-livre, se dá sem dúvida não no âmbito do completo ineditismo. Fabricar esse algo é simplesmente estabelecer novas relações a partir do existente. Essa relação entre Ponyo e Sosuke, por exemplo, não existe; ela é. Compreendemo-la porque somos humanos, e não porque assistimos à vida tão-somente. Poderíamos chamar de Amor, outros de Amizade, outros ainda de Paixão... são nomes... Passion, Friendship, Amore... admiramos um único fenômeno, rizomático por excelência.

E dessa forma Miyazaki vai revelando formas, traçando o universo...

Mateos.