sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

O Inferno nas mãos dos Iagos-Demiurgos

[L'enfer. Claude Chabrol. 1994]

Um estudo psicológico sobre a histeria masculina de um ciúme fantasiado, ou um estudo psicológico sobre a histeria feminina de uma ninfomania velada? No cinema de Claude Chabrol sempre há um paradoxo. E no thriller, que ele abraça enquanto tom enquanto nega as regras que bem lhe interessa subverter, é necessário o mistério – que Chabrol não revela no seu filme “sem fim”.
Acompanhamos – como em Dom Casmurro – a história sob o ponto de vista dele. No livro, entretanto, ele nos conta o passado, que ele tanto rememorou e analisou. Aqui, no filme de Chabrol, roteiro de Clouzot, acompanhamos o presente, a ação; a emoção em ação presente.
Em poucos filmes senti tão fisicamente a dor de um sentimento como neste? Nem Touro indomável de Martin Scorsese, nem Otelo de Orson Welles, nem De olhos bem fechados de Stanley Kubrick... nenhum explorou, de forma tão visceral, essa doença natural que chamamos ciúme.
Paranoicamente montado, monstruosa e delicadamente musicado. Quadros que se entortam, olhares dúbios que se encontram, perfumes que se esbarram, gestos que em imagem rasgam a banda sonora, danças misteriosas de corpos...
Afinal, Capitu traiu Bentinho? Nunca saberemos – eis a graça (não a desgraça!). Sabemos o que se passa na cabeça dele – as imagens que ele completa, as atmosferas que ele recria, os fatos que ele supõe

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PONTO DE VISTA, e aí – no caso de Chabrol - enquadramento, mise-en-scène: espaço.


Mateos.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

É proibido minimizar o olhar de Ethan Edwards/John Wayne, e as palavras de uma mulher inocente

Dizem de Ethan Edwards (e de quebra o nomeiam alter-ego de Ford) que ele é um 'amoral'. Dizem que Ethan (e de quebra Ford) é racista, intolerante, colonizador, assassino, bárbaro. Dizem que Ford segue a simplicidade na construção das personagens, o velho maniqueísmo melodramático, o teatro do bem e do mal, onde os índios (que Ford odeia) são os demônios, e os brancos (como Ford), os anjos...
Vejo triste a grandeza de um mistério ser negligenciado, a beleza das nuances serem solapadas pelas pré-concepções. John Ford é um gigante, e não é à toa. A construção das personagens de um cineasta como Ford está no como eles dizem suas falas, na geografia do espaço (não feita apenas de homens), nos movimentos de câmera expressivos, nos olhares significativos, nas hesitações dos corpos, nas entradas e saídas de quadro, nos gestos involuntários de fúria ou carinho, na relação de identidade entre personagens aparentemente opostos, nas elipses que revelam passados obscuros, no áudio, no corte, na moldura, nas portas. Digam o que quiser, O CINEMA de Ford está intacto, Rastros de ódio está intacto, Ethan Edwards está intacto!
A primeira premissa para se assistir à um western é justamente a posição anacrônica que o espectador deve assumir. Começa Rastros de Ódio, e após os créditos: 1833 Texas. Nem "2009 Amazônia" e índios mundurucus, nem "2001 Eua" e terroristas árabes, mas: "1833 Texas" e brancos e índios comanches. Lógico que existem filmes (como Ivan, o Terrível de Eisenstein, por exemplo) que ambientam o filme em outra época e dialeticamente discutem o passado e o presente (no caso de Ivan: Stálin, que já tinha sido representado em outro contexto por Alexander Nevski). Mas definitivamente não é o caso de Rastros de Ódio; e Ford deixa claro isso no início, quando a porta da casa sozinha no meio do árido e inóspito deserto do Monument Valey se abre para mais uma estória; a família temerosa sai à varanda para ver o que vem do horizonte, e é ele, Ethan Edwards, que tinha ido à Guerra da Secessão para talvez não voltar, que volta para a casa de seu irmão; apenas ele, seu cavalo, um saco de moedas de ouro e várias cicatrizes incuradas. Ele não significa, mas é o próprio homem do Oeste (John Wayne), que, vindo do horizonte no início da narração de uma estória, ganha a dimensão de personagem. Isso não pode ser esquecido, nenhum nem outro, Ethan Edwards é um arquétipo histórico e um mito poético; um personagem apenas, de um certo gênero narrativo.
A relação de Ethan com os índios é o ápice poético - que talvez só será atingido de novo por Tonacci em seu Serras da Desordem - do paradoxal confronto/comunhão entre colonizador e colonizado. Ethan volta de uma guerra estúpida que a sua raça criou, todas as suas grandes sabedorias são indígenas, mas ética e existencialmente ele pertence à estirpe branca. Simplesmente rotular que Ethan é racista é minimizar problema filosófico-poético extremamente profundo – este da constituição de uma civilização a partir de uma processo histórico bélico de luta por territórios, entre culturas riquíssimas, que degladiam/admiram. John Ford, como todo ser humano, é extremamente misterioso em suas contraditórias afirmações – tal qual os personagens que o próprio deita os olhos. Tido normalmente como transparente, e defendido por seus "enquadramentos belíssimos", perde-se amiúde os seus berros sutis...
Quando, nos braços, Ethan enfim encontra a sua possível filha, sendo ela índia/branca, ele tem que decidir entre a vida ou a morte desse novo ser miscigenado. Decide a vida. Ele, porém, inescapavelmente, é um fantasma daquilo que não pode mais existir, senão entre a terra e o céu, vagando nos ventos, durante a contação de uma estória, a leitura de um gibi ou a projeção de um filme... no intervalo que o mito tece ao esculpir o real.

Mateos.

p.s: escrevi esse texto faz tempo e nunca tinha publicado, hoje vi Crepúsculo de uma raça e tive que fazer uma homenagem a este gigante, a mínima que fosse... Crepúsculo, obra-testamento, tem o the end que sintetiza poeticamente todo o Ford: a figura feminina branca pura, em tom de maternidade, para a a pequena índia pura que adotou durante o filme - além das raças, na mais pura miscigenação - soletra/ensina pra ela a palavra HOME, o contra-plano são índios cheyennes caminhando rumo ao horizonte...

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O privilégio dos fodidos

“Foi um privilégio poder filmar em lugares como o Soledade, o Bolonha, Sé e Líbero; só isso valeu todo o trabalho que tivemos.”

Assim começou o e-mail do meu grande amigo Marcelo Marat. Se ontem tive um dos dias mais felizes do ano foi simplesmente porque senti o doce gosto na boca de dever cumprido. 3 dias de filmagem, desde dezembro, enfim terminamos o PRIMEIRO – segundo filme da Sr. Cheff Produções. Agora a-à-há montagem...

Maior privilégio do que poder filmar em tais lugares foi poder filmar com tais pessoas: Marcelo Marat (que interpretou o papel do Rei), Aquiles (que interpretou o papel do Mago) e a Duda (que interpretou a Morte). E ainda, o Romario (diretor de arte e assistente de direção), a Luah e a Luana (produtoras) o Clei e a Alê (pai e mãe do Aquiles - e da pequena Diadorin), o Cauby (que fez a câmera do plano-abertura), e o Daniel (que fez uma pontinha e quebrou um galho ontem). Infelizmente o Felipe não pôde participar presencialmente das filmagens, mas foi fundamental como assistente de direção e fez uns storyboards que o impulsionaram pro mundo do desenho de uma vez por todas. Ainda teve o meu amigo Edison Santana, numa participação mais que especial ontem chamando Ogum na última cena rodada. Mesmo com o “corta!” o batuque não parou; e em roda, o Aquiles brincava de toureiro - com a capa que o Romario fez - num bando de adulto dançando em volta, dominados pelo tambor. Todo mundo comungando aquele momento.

E tudo foi assim... nos outros dias, em que acordamos 4 da manhã, ou em que quase fomos levados pela maré... nos divertimos; e foi um prazer inenarrável fazer cinema com essas pessoas.

Nem tenho forças humanas para agradecer a todos eles por eles serem apenas o que são e estarem apenas onde quiseram estar. Agradeço apenas. Evoé vida, e viva o cinema. O fazer é o fato, podemos dormir tranquilos.

Mateos.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Comédia Humana de Eric Rohmer

“A música é o exercício do espírito que não sabe calcular” (Leibniz)
“O cinema é a música da luz” (Gance)

Assim como japonês Yasujiro Ozu e o italiano Roberto Rossellini, o francês Eric Rohmer prefere a vida mais que o espetáculo. E é por isso que faz filmes: para falar melhor do que não vemos mas sentimos, para ver melhor o que vemos mas não sentimos. É da natureza – dos seres e das coisas – que a câmera, o olho, a mente e o coração de Rohmer se debruçam; para captar, contemplar, analisar e se emocionar.

Um cinema de observação, de desbravamento/enquadramento silencioso do espaço, de fascinação pela poesia do cotidiano, com suas banalidades e acasos, seus movimentos e surpresas. No quadrado do cinema, participamos - normalmente durante uma hora e meia – do mundo – de novo; mas um mundo filtrado pelos olhos de um observador - dos mais apurados – do movimento cósmico e psicológico; um mundo reconstruído pelas mãos – das mais apuradas – de um dos artistas áudio-visuais mais importantes da História do Cinema.

Seu cinema não é o da fantasia, nem mesmo o do “entertainement”, não é o cinema da ação, mas o da contemplação. Cinema da atenção, da paciência, da espera, do respeito. Observamos o mundo através do cinema, o cinema à imagem do mundo: uma janela – aberta por Eric Rohmer. A economia nos movimentos de câmera e a simplicidade narrativa são o caminho que o cineasta modernamente abraça, para alcançar – através da clareza e da transparência – a Humanidade nos personagens, e a Graça nas coisas. A evidência dos detalhes é recolhida no tempo do plano, que nossos olhos percorrem sem grandes desassossegos. O suspense natural (a vida em movimento de acasos) é criado aqui por um matemático rigoroso, que nos apresenta o mistério dos números, através da perfeição das fórmulas.

Seus personagens, como todos nós, são sempre confusos, sempre enfrentando dilemas morais. Seus personagens, como ele, falam pelos cotovelos, se expressam verbalmente, conversam, divagam, tagarelam. Seus personagens, como ele e como nós, se expressam ainda mais quando não falam, quando escutam, quando olham, quando tremem, quando beijam, quando fazem amor, quando descansam, quando traem, quando choram, quando sorriem, quando se apaixonam, quando se desapaixonam. Seu cinema nos faz lembrar do que chamaram “cinema mudo” um dia, das grandes imagens que permanecem, de Lumiére, Griffith, Stroheim, Murnau, Dreyer. A força de suas imagens é fruto de um rigor devido preceitos éticos duros, que conduzem o seu universo ficcional e estabelecem o seu modus operandi. Rohmer busca o naturalismo, que não é algo captável na maioria das vezes – já que se trata de um cineasta ficcional – mas, sobretudo, algo exaustivamente trabalhado. Uma construção. Se seus atores parecem improvisar o tempo todo é porque atingiram um êxito, nada mais; se sua câmera parece desvelar o frescor dos gestos e expressões é porque a encenação é muito bem realizada, a contenção é acreditada e a observação cinematográfica é uma reflexão existencial permanente. Seu cinema é o da denotação, do significante, da superfície, do material, e é rumo a um classicismo nesse sentido que o cineasta caminhou em toda a sua obra (com raras exceções). Filmes que foram divididos em grandes capítulos (“Contos Morais”, “Contos das Quatro Estações”, “Comédias & Provérbios”), e que fazem parte, cada um ocupando uma pequena e essencial parcela, de uma obra única. É a Comédia Humana de Eric Rohmer, em som/imagem, pintando a segunda metade do séc. XX.

O tema máximo de seu cinema é o maior tema do mundo, principalmente depois da Revolução Francesa: as relações amorosas. Encontros, desencontros, inconstâncias afetivas, emoções incontroláveis, confusões sentimentais, paixões proibidas, problemas conjugais, solteiros solitários, adúlteros angustiados, mulheres livres, super-homens... Rohmer faz um mural da humanidade, cada filme é um retrato. “Todo grande filme é um documentário”, dizia o cineasta, o Balzac da sétima arte.

Rohmer capta um momento da vida de seus personagens. Não querendo abarcar o todo ou dar uma resposta, o cineasta questiona, observa, balbucia acerca. A narrativa seleciona, dá saltos, sem nunca perder a clareza, nem mesmo a linearidade. Propõe elipses, monta imagens de letras e fenômenos na construção diegética de um produto áudio-visual, que ao invés de se enfileirar em parágrafos como na literatura, se justapõem em planos. Estrutura as suas estórias como contos: um tema é focado, uma trama é trabalhada, todos os sub-temas e sub-tramas aparecem apenas para enriquecê-la. O assunto nunca é esgotado, o impossível e o fantástico são relegados, do possível se extraem gotas e mais gotas, para descobrir que são infinitas, que a última nunca chegará. Os personagens – modernos – buscam experiências para se compreender melhor (ou apenas para fugir ao tédio), o livre-arbítrio tem o peso existencialista e as dissoluções das tradições provocam uma nostalgia paradoxal.

Seu ponto de vista é o tableaux, sua montagem natural é o campo/contracampo. Mise-en-cadre*, e então mise-en-place**, mise-en-geste***, mise-en-jeu****... e, voilá: mise-en-scéne*****.

Eric Rohmer foi também crítico, ensaísta e analista; escrevia com seu nome de nascimento: Maurice Schérer. Defendeu, com seus amigos Chabrol, Rivette, Godard, Truffaut, a “política dos autores”, o cinema hollywoodiano. Escreveu sua monografia com Chabrol, um livro sobre Alfred Hitchcock, onde alertava para a arte do diretor (mise-en-scéne), a criação cinematográfica das formas feitas de idéias materializadas em blocos de imagem/som, arte este que estava sendo realizada, também e principalmente, no seio da máquina da indústria cultural, e que transcendia os clichês dos roteiros e os rostinhos das grandes estrelas.

Seu cinema é cheio de lições. Nos re-ensina a olhar o mundo, nos ensina a re-olhar o cinema, nos ensina sobre a matéria, e nos ensina sobre o espírito. O sacerdócio de Rohmer é rumo à sabedoria; a experiência da vida & da arte sendo a maior escola. Não conheci o homem mortal, apenas o imortal... aos que o conheceram em carne e osso provavelmente agora ainda sofrem a sua morte (1920-2010), eu, e quem acabou de nascer, vai conhecer apenas a obra, as pegadas, aquilo que o homem deixou para sempre, para todos. Aquilo de eterno.

* “construção do quadro”: o trabalho do diretor.
** “construção da localização dos seres e objetos no quadro”: o trabalho do diretor.
*** “construção dos gestos dos atores”: o trabalho do diretor.
**** “construção do jogo de interpretação entre os atores”: o trabalho do diretor.
***** “construção da cena”: o trabalho do diretor. Todas as outras estão contidas nessa construção.

Mateos.