quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Raiou

“Não perturba
Não perturba
os caras de pau de Abaetetuba” 
(Viviane Batidão & Dj Betinho Isabelense)

Me pediram pra escrever resenha, vejam só. Sei escrever resenha não, arrisco ensaio. E canto coloquial. Por aí.
Entrei nesse jogo dos conceitos-palavras no ramo do cinema, onde também me meto; mas música mesmo sempre tive só reflexão pra resolver composição. O resto sempre foi muito intuitivo, gosto – enfim, essas coisas que no fim são as que mais pesam na hora de criar. Magia.
Formular pensamento - aí já é outra história. Filosofia.
Mas já que com a música, e com o Lucas Guimarães, eu jogo esse jogo de criar muito mais que o jogo de pensar, vou dar as cartas aqui nesse tom. No fim tudo se embola. O gosto de dividir as coisas é só pra quem ler a divisão lembrar que o resultado é a soma das partes.
Então – hommo ludens brincando de hommo sapiens – vamos fazer som:
O tom: lar menor.  Lembrando que Menor não é menos, é só um tom, uma qualidade. Faz parte da alçada das propriedades. Menos com menos, inclusive, em alguns casos, dá Mais. No caso do Lucas Guimarães essa é uma questão seminal: Como ser voz retumbante tendo curto aparelho vocal? Como ser vários instrumentos tendo um corpo apenas? Ser menor para ser grande, eis uma das fórmulas encontradas pelo Lucas, meu grande parceiro. Mais e mais.
Estranho. Parece estranho falar de matemática ao falar desse disco? Pois descobri, ao sentar para escrever, essa associação imediata e contundente, que parte de óbvias associações (de Pitágoras a Beethoven, de João Gilberto a Tom Zé). Dessa tabuada que o caboquinho de Abaeté aprendeu na marra surgiram esses versos cantados, aritmética e liricamente entoados, geometricamente montados entre ruídos, bordões e atravessamentos. Aluno aplicado no seu gazetar, sonhador convicto, trabalhador hedonista, ariano estóico, artista consciente. Peregrina na própria rede, sempre o bom e velho açaí pra acompanhar. 
“Eu faço samba e amor até mais tarde, não tenho a quem prestar satisfação”, o mantra do Lucas ele empresta do Chico. Se o quarto-porão onde vive tivesse porta ele botaria o “dont disturb”, o “não perturba”, porque por ele a vida seria ficar apertando esses pedais, rabiscando esses versos. O cara diz que saiu do lar pra ganhar o mundo, mas é uma tremenda mentira. O projeto é maior: é ganhar o mundo sem sair do lar. O Lucas não sai, ele chama. Viajar. 
Caliandares é o seu barco ébrio, que embarcamos sempre que ele acorda o violão. 
Meu contato com o disco é o daquele que acompanhou toda a sua construção, e o meu contato com as músicas, desde a primeira vez, é o daquele que enxerga em cada detalhe uma estranha familiaridade. Não à toa hoje tocamos na mesma banda. Dividimos o mesmo palco, os mesmo sonhos, as mesmas angústias, as mesmas conquistas. 
Por que o Caliandares não é só a conquista do Lucas. É um dos marcos históricos dessa nova geração de compositores, que buscam, dentro da tradição da música popular brasileira, botar vírgulas novas, cores amazônidas, sem cair no regionalismo canhestro. É uma conquista de uma cena independente, por vezes invisível, amiúde desestimulada pelas políticas sectárias e mesquinhas. 
Esse barco construído no braço, a enxó, martelo, serrote e lixa, como tradicionalmente ainda constroem os barcos em Abaeté, é um sopro contundente, forjado com a paixão própria dos amantes, calafetado com o cuidado caro dos rigorosos.
De Abaeté, mais famosos que os barcos que transportam passageiros, são os pequenos barcos de miriti, que ganham função lúdica na mão das crianças e função mística na peregrinação dos romeiros durante a festa do Círio de Nazaré. 
De função lúdica, mística, histórica, pedagógica, poética, política, gratuita surge no horizonte esse Calliandares... e por onde andares, Calíope sentir-se-á representada, junto à Marcelo, Baque, os Pavones, as doces produtoras, a corja dos artistas que não sabem se vender, os devaneadores. 
Com o espumante vulgar que me resta nesses tempos de vacas magras, brindo o lançamento dessa embarcação. Vida longa. 
Raiou.

                                                 
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http://www.lucasguimaraesmusic.com/