quinta-feira, 29 de abril de 2010

Profissão: cineclubista (parte III)

[Inovacine - Bragança - abril - 2010]

Que Bragança é linda todos sabem, é inútil dizer. Que os bragantinos e bragantinas são de notável estima, idem. Porém, sabemos agora, que em questão de cinema - diferente de rádio e tv, que estão em pleno desenvolvimento - o negócio tava fraco.Negrito tava porque acabou de acabar mais uma "Oficina de formação cineclubista" e todos os adolescentes que participaram estão ávidos para estreiar o novo cineclube da cidade. A revelação da magia do cinema se concretizou em palmas e lágrimas na incrível sessão de "A felicidade não se compra".

Me deixou particularmente impressionado a excelência do projeto de Capra. Pois, se ele intentou causar emoção suscitando os valores cristãos de amizade, solidariedade e compaixão aliados ao "way of life" capitalista norte-americano, ele, atemporalmente, conseguiu - afinal estamos a falar em Bragança Pará Brasil 64 anos depois. Foi a primeira vez que eu presenciei num debate pós-filme todos os espectadores brigando para dar a sua opinião. Uma brava garota, com intensas dores nas costas, chorando de dor, permaneceu até o fim da sessão, garantindo no debate que valeu a pena, e que as lágrimas de dor e emoção se confundiram no périplo audiovisual. É um filme infalível em seu intento. Capra consegue, mesmo com os efeitos especiais ultrapassados ao público contemporâneo, expressar todo o espírito que, apelativamente, suscita com a força melodramática de suas sequências. A dispersão, natural no público infanto-juvenil, foi enfeitiçada pelas belas imagens em movimento sob áudio e pelo gentil espírito do cineasta americano. Todos acreditaram no poder do cinema, e eu, no poder de Frank Capra.
Mas nem só de cinema clássico vive o cinema, e disso os adolescentes bragantinos já sabem na ponta da língua. O expressionista "Gabinete do Dr. Caligari" causou estranhamento mas não mexeu com o público. Entretanto, bastou a navalha de Luís Buñuel vazar o olho do bixo-mulher para todo mundo aderir ao surrealismo. Foi a aula de "montagem do circo", onde é ensinado que um cineclubista, além de cinéfilo, publicitário, articulador, crítico, curador, professor e pesquisador, também deve ser um técnico, que os alunos aprenderam a regular data-show, dvd, som e tela para assistir à primeira projeção feita por suas próprias mãos. Todos sentiram o poder do cinema, e eu, o eterno poder dessa obra-prima. "Um cão andaluz", literalmente, é o inefável, a cinegrafia pura.


Viram do bom e do melhor... assistiram e refletiram... bola pra frente...

Mateus Moura (01/05/10)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Gafes da história do cinema (e do séc.XX)


Camarada Vladimir Ilitch Lenin, depois de assistir "Intolerância" de D. W. Griffith, ficou impressionadíssimo, e, apressadamente, correu atrás daquele grandioso diretor americano e ofereceu-lhe o contrato, que julgava inegável, de ser o cineasta do Partido Comunista.
A gafe de Lenin ocorreu, provavelmente, devido o seu desconhecimento de "O Nascimento de uma nação", filme anterior do ariano diretor.


Alguns anos mais tarde...

Herr Adolfo Hitler, depois de assistir "Metrópolis" de Fritz Lang, ficou impressionadíssimo, e, apressadamente, correu atrás daquele grandioso diretor alemão e ofereceu-lhe o contrato, que julgava inegável, de ser o cineasta do Partido Nazista.
A gafe de Hitler ocorreu, provavelmente, devido a sua confusão com a estrela que adornava o cafofo do vilão.


Mateus Moura (24/04/10)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Profissão: cineclubista (parte II) & “Filho de Xangô” de Marcio Barradas

Muita notícia importante hoje para o cinema paraense.

Os frutos de Santarém, das sementes plantadas pelo Inovacine, são uma glória. Cineclube Puraqué reestreando com “Fellini oito e meio” e Cineclube Casa Brasil estreando com “Bastardos Inglórios”. Não só estão programando atividades cineclubistas, mas estão passando os melhores filmes do mundo! E exatamente os filmes que deixamos lá... é com um orgulho e uma satisfação imensa que recebo esta notícia. A sensação é de que o ‘trampo’ realmente dá certo. Semana passada foi Soure, aguardamos ansiosos a inauguração do Cine Cruzeirinho. Semana que vem é Bragança.

Hoje, na Escola de Samba Deixa Falar, na cidade velha, exibimos três filmes de realizadores paraenses. Houve a estréia de “Filho de Xangô”. E essa é a segunda grande notícia: Marcio Barradas (diretor de O Mastro de São Caralho - que figurou entre os 10 melhores filmes do ano passado escolhidos pela APJCC) só melhora. Seu novo filme é filmado em Vigia, tem 30 minutos, e é o que mais me impressionou no cinema esse ano.

Com a bagatela de 3.000 reais, sem atores, produção independente, dirigindo, fotografando, musicando e montando, Barradas é um autor máximo, e um artesão em plena ascensão.

Poderia falar que ele é o Rossellini mosqueirense, o Glauber marajoara, mas Marcio Barradas não é nada mais nada menos que Marcio Barradas. É um estilo de personalidade forte o que se percebe em “Icoaraci”, “Poeta da praia”, e nesse “Filho de Xangô”.

Atrás de um realismo genuíno, Barradas acredita, proeminentemente, nas cenas de “fuleragem” entre amigos, de “sacanagem” entre amantes, de contação de estórias, de papagaios perambulando nos tetos, de roda de maconha, de birita com bilhar, de vendedor de picolé em ônibus, de batuque, de dança, de flerte, de acordar ‘bodado’ no sol quente. Se toda grande ficção aspira documentário e vice-versa, Barradas sabe o caminho das pedras. E acredita salientemente no superficial – aquilo que está na superfície. E no cinema -máquina capaz de captar os segredos do óbvio.

Em 30 minutos, como em “A poeta da praia”, o cineasta quer mostrar o seu potencial enquanto diretor. Experimenta a linguagem cinematográfica e colhe cenas poderosas como o banho de lua-luz que recebem os amantes numa ‘putadinha’ no rio, o ribeirinho desesperado perdido no verde envolventemente calmo da floresta, o travelling e o zoom que não acaba no enforcamento deste, a sensorialmente envolvente cena final onde conjuga sobreposições, zooms, câmera na mão em movimentos ousados, um contraluz gritante, criando assim, com imagem-movimento em paradoxal originalidade, o ritmo do batuque de xangô que transborda a trilha sonora.

Sincero, o cinema de Marcio Barradas impressiona por sua honestidade e integridade. Não tendo pena de si mesmo por sua condição sócio-econômica ou de estar à margem do grande circuito, ou negligenciando o trato de seu filme com desculpas de falta de recursos, o diretor recebe minha maior admiração e respeito. Que continue a produzir, e que me chame da próxima vez se precisar quem varra o chão.

“Só o profeta enxerga o óbvio” (Nelson Rodrigues)

Mateus Moura (APJCC – 04/2009)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Viva o Brasil!

[Rio, Zona Norte. Nelson Pereira dos Santos. 1957]

o grande Grande Otelo como Espírito da Luz Soares

É voltando, via Centra do Brasil, da Zona Sul para a Zona Norte do Rio de Janeiro, num trem lotado, que presenciamos encantados a descoberta, pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, da substância da gênese de um gênero musical. O som do trem correndo é a batida reinventada na caixa de fósforos, os diálogos diários são a matéria-prima dos versos rimados, e o sensível coração machucado de um sofredor a roda lírica que faz girar a poesia que chamamos samba.

o maior de todos os sambistas: Zé Keti, em quem o Espírito é baseado

Mateus Moura (21/04/10)

terça-feira, 13 de abril de 2010

FULLERIANAS PARTE 4

[The Big Red One, 1980]

“Sobreviver é a única glória da Guerra”. (Samuel Fuller)

Depois de “The Naked Kiss” em 64, Fuller dirigiria até 80 apenas dois filmes – sendo um renegado por ele (Shark!, de 69). O mais pessoal filme do diretor maldito e um dos mais belos e tristes retratos do assunto que mais perturbou esse homem, é a obra-prima de Sam Fuller no gênero, mesmo com um histórico de grandes filmes na década de 50.

Glauber Rocha falou depois de ver Rastros de ódio de John Ford que ali o irlandês já é o homem maduro que dominou a vida e apreendeu uma arte. Não existiriam mais especulações formais, os caracteres agiriam como peças resistentes de um artesanato muito além do exercício técnico. Seria a essência humanística que espontaneamente se diria em linguagem que traria a marca do estilista maduro, do inventor realizado. Em “The Big Red One” Samuel Fuller se apresenta no mesmo estado.

“-A verdade é que nenhum de nós fazia a menor idéia do que era a guerra”. Quem, em off, nos narra a estória é o próprio Sam, personalizado e vivido por Robert Carradine; que encarna, voltando no passado, o fuzileiro titular da “Big Red One” na 2ª Guerra que Fuller foi um dia. Mas Lee Marvin (este grande ator!), o sargento, apesar de ser baseado realmente no sargento da Big Red One e que Sam conheceu, é também um alter-ego do Fuller de 68 anos na época do filme, como se o próprio cineasta já tivesse alcançado o nível de maturidade que admirava em seu velho mestre. Já idoso, cansado, simplista, duro e emotivo, Fuller conta, pela última vez, a estória da história que viu com os próprios olhos.

Que espaço social é esse, o do exército? Diferente da vida civil, preocupações banais como hierarquia racial e higiene são dinamitadas, como na cena em que um soldado, antes do exército americano aportar na Sícilia em 43, conta vantagem dos seus parceiros porque tem um papel higiênico e aproveita a ocasião para uma tentativa de humilhação de um “carcamano” ítalo-americano. Os integrantes da Big Red One deixam claro a tolice metendo um fuzil na boca do mal cidadão. Ao aportar na Sicília, a primeira imagem que vemos é a patética cena do homem quase completamente submerso com o braço estendido e o papel higiênico levantado para não molhá-lo. Logicamente vira alvo fácil, e nem chega à praia. Na guerra não há lugar para supérfluos, é sobre vida e morte, sobre uma situação-limite, sobre extremos. Laços de amizade feitos nesse espaço, marcado pela dor, provavelmente perduram para sempre, assim como duras posições morais. O oposto completo também é possível, Fuller não pretende mostrar apenas o negativo ou apenas o positivo, mas tudo.

A efemeridade da vida e a insignificância dos sonhos e da fé são derrubadas por Fuller em uma seqüência com substitutos; que, como todo ser humano, acredita ser especial, insubstituível. Numa delas, Zab recebe a carta da mãe com as felicitações e a notícia da venda de seu roteiro para Hollywood por 15 mil dólares, logo propõe uma festa para o pelotão, dando aos seus amigos o poder de escolher o que querem fazer com uma mulher. A equipe titular imortal tenta responder, mas não conseguem ou são interrompidos. Kaiser “baby face” – mais um cadáver vivo com uso temporário de braços e pernas – sabe o que pedir, e realmente faz um belo pedido. Ele tem fé que tudo aquilo – apesar de tudo – vai acabar bem... pelo menos para ele. Um bombardeio começa, e sua vida termina. Mais um bombardeio começa, mais uma vida termina. No fim, as vidas dos homens viram apenas números e lápides. De insubstituível o cemitério tá cheio.

A que ponto o homem chegou?, se pergunta Sam Fuller. Os campos de concentração, Falkenau. Ao se apresentar o inferno nada é dito, tudo feito de expressões de atores, chiaroscuro, olhos desalmados de vítimas, zooms, travellings, mise-en-scène, foco, emoção. Griff (Mark Hamill) atingiu o seu ápice de tolerância com todo o absurdo bestial da guerra. Quando ele entra no forno há um close: seus olhos são melancólicos e impotentes; há o contracampo: o olhar do esquizofrênico de guerra deitado nas cinzas e ossos de seres humanos. O corpo de Griff reage, faz movimentos mecânicos que ele acabou de aprender com seu inimigo, que engatilhava a arma e disparava – sem balas. Griff têm balas. E usa-as para matar o seu inimigo. Mas não é só aquele homem que ele quer matar. Fuller não mostra mais o contracampo de Griff e enquadra o soldado de frente para nós: espectadores. Griff atira, atira, atira. Em nós; nos homens, na humanidade. Por um momento foi tirado de Griff todo o resquício de amor que ele tinha pela vida humana, e ele teve um lampejo de insanidade.

A seqüência da volta do Sargento Lee Marvin ao lugar que o persegue em seus pesadelos é sublime. O Fuller-Carradine-narrador não sabe o que aconteceu com o sargento, apenas que ele esteve ali na Primeira Guerra. Ele é descrito como ausente, um homem que dá a impressão de estar procurando um fantasma na neblina. Sabemos que ele assassinou um homem, e a culpa o persegue. No mesmo local onde havia esfaqueado o huno sob a sombra da cruz de Cristo, desta vez, dá vida a um recém-nascido. “-Recebemos um monte de medalhas, não por salvar o bebê, mas por matar os alemães”.

Para terminar, Sam Fuller nos mostra em 4 planos-detalhe - durante a seqüência do Dia D na praia Ohama - o que é cinema. “Sua obra continuava a viver como os relógios nos pulsos dos soldados mortos”. A célebre e bela frase de Jean Cocteau acerca de Marcel Proust é revista em imagens, em planos-detalhe. Três vezes o braço do cadáver de corpo anônimo aparece, a água do mar está da cor da água do mar no primeiro plano. O homem está submerso nas águas. A batalha segue... o tempo passa, o relógio vive... o braço – e o cadáver oco - são cada vez mais engolidos, e o mar cor de água se tornou rubro cor de sangue no último plano. Guerra: Fuller: Cinema.

Mateus Moura.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

FULLERIANAS PARTE 3

[The Big Red One, 80]

“Um filme é como um campo de batalha”. (Samuel Fuller)

Créditos... Jesus na cruz em plano geral, neblina, p&b, França, novembro de 1918, 1ª Guerra Mundial. Um soldado – mostrado do rifle para baixo - vagueia perdido, vasculhando cadáveres. Um cavalo negro perdido na guerra humana derruba o soldado e quebra o seu rifle... outro homem aparece, ele fala outra língua... É Guerra... o soldado, sem rifle, experiente, esfaqueia o inimigo... plano geral de Jesus na cruz, agora um assassino e um morto complementam o quadro. Um primeiro plano do Jesus de madeira... zoom-in: ele não tem olhos, apenas dois buracos vazios... Quem olha por nós afinal?... O soldado volta para a sua base, bate papo com o seu superior. Com um pedaço de tecido vermelho que pegou do homem que matou, ele cria o símbolo da 1ª Divisão de infantaria: The Big Red One: é a estória dela que será contada; também. O soldado sem rifle descobre que o homem que matou falava a verdade quando dizia que a guerra havia terminado. Seu superior tenta consolá-lo afirmando que ele não sabia... “-Eu não sabia, mas ele sabia”... Ele foi morto de graça, como todos os outros... É Guerra... Fuller mostra a barbárie e a solidariedade, o carinho e a violência, o amor e o ódio, a emoção: o ser humano.

Mateus Moura (08/04/10)

Um poema para Robert Bresson

Saindo de uma Projeção de Bresson

Passeio na praça. Pombos, asas: sons imagens.
Que belo é o movimento. Que mundo é o som.
Que rosto, que gesto, como são belos os olhos,
como são hábeis as mãos,
que ritmo os pés. que ritmo, que ritmo os pés!
As imagens e sons dizem: - Me perco em você.
Tudo passa, tudo cheio de Graça, passando.
Sendo tudo, signficando nada, por instantes
sou o cinematógrafo.

Não, já não sou, já não fui.
Só o cinematógrafo
conhece o é.


Mateus Moura (07/05/09)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Amigos e mestres

Sabe aquelas obras que, no momento do virgem contato, sentimos a estranha e paradoxal sensação concomitante de inveja e admiração? São dois sentimentos que parecem causais se olhados descuidadamente, mas que, entretanto, revelam nuances mais complexas se bem analisados. Tomando o lado bom dos dois é que se salva a alma; da inveja retém-se e investe-se na caminhada pela superação do objeto invejado, da admiração elimina-se a bajulação e apreende-se a reflexão.
Entrei no cinema por Buñuel, na crítica cinematográfica por Truffaut, e foi com esse mesmo dúbio e fascinante sentimento que experienciei com eles o mesmo que agora experiencio com Jairo Ferreira. E assim também foi com Fellini, Godard, Glauber, Reichembach, Vigo, Fuller, Bresson, Bava, Pessoa, Cecim, Degas, Artaud, Zé Ketti, Morricone, Ennis, Becket, Nelson Rodrigues..............
Esse sentimento só surge quando primitivamente descobrimos que o nosso projeto já foi realizado. Mas graças a Deus, o universo (de onde somos parte constituidora) é mutante, e o projeto vira outro, fagocita o ex-gêmeo e a gestação segue.
Tudo isso me vem à mente enquanto leio o livro do Jairo [Críticas de invenção: Coleção Aplauso]. Meu primeiro contato com o crítico maldito foi com o "Cinema de Invenção", sem dúvida a bíblia do cinema marginal brasileiro; e, sempre me interessou o que ele defende, a postura, as idéias, as preferências, as referências. É um amigo que converso sem precisar aguentar a presença física. Minha relação com a crítica sempre foi essa, a vontade de conversar com outras pessoas sobre os filmes e cineastas é que me leva ao contato com os críticos, também o que me leva à crítica. Alguns eu ouço sempre, às vezes falo, com Jairo a conversa flui. Não falo diretamente com ele (até porque ele está morto), mas dialogo através dos textos. Algumas vezes discordo radicalmente de suas posições, e depois até vejo que ele discordou da sua própria postura anos mais tarde. E isso me interessa muito, porque posso discordar de tudo o que falo nesse texto alguns dias mais tarde e isso realmente me encanta.
Esses senhores que citei acima - que parecem mais amigos pelas "afinidades neurológicas" comigo - muitas vezes perdem em conceito de grandeza para os que chamo de "mestres". Um exemplo nesse caso é o Paulo Emílio Salles Gomes, que é maior que o Jairo. Com o Paulo Emílio, porém, mais escuto, como o aprendiz atento. Não que ele esteja isento de erros ou que não discorde de algumas de suas posições, é só que os erros que ele toma não seriam os que eu provavelmente tomaria, enquanto que com os "amigos" se passa justamente o oposto.
O primeiro artigo do livro que estou lendo do Jairo é "Cinema: música da luz", e a epígrafe é de uma síntese solar tão extasiante que transmito como uma sabedoria. De Elie Faure:

"O cinema, arquitetura em movimento, logra despertar sensações musicais que se solidarizam no espaço, por meio de sensações visuais que solidarizam no tempo. Na verdade, é uma música que nos toca por intermédio da vista"

De Jairo, indico o resto do texto para quem se interessar... uma reflexão existencial sobre o cinema, a crítica e o Eu. Biscoito fino. O título é "Cinema: música da luz" - referência à mágica frase de Abel Gance: "O cinema é a música da luz".

Mateus Moura

domingo, 4 de abril de 2010

FULLERIANAS PARTE 2

[The Naked kiss, 1964]

“Nenhum mortal é feliz até o fim, nenhum, nem afortunado, pois nunca nasceu alguém imune à dor”. (Eurípides)


Samuel Fuller dá ao mundo em 64 a continuação de Shock Corridor, a mesma atriz (a soberba Constance Towers), que viveu uma dançarina de cabaré no filme de 63, interpreta uma prostituta agora em 64. Em “Paixões que alucinam”, seu amante, enlouquecido pelo prêmio Pulitzer de jornalismo, enlouquece ao tentar solucionar um caso de assassinato em um manicômio. No decorrer da narrativa ela afunda junto com ele, mas em lágrimas e tragédia. Constance Towers é a heroína fulleriana por excelência. Diferente do herói de Sam, duro e sem ilusões, a heroína, apesar de dura também, têm ilusões, e não lhe é permitido, como no caso masculino, o cobertor da insanidade. O mundo e o Destino sempre a derrubam. Ela afunda, mas limpa as lágrimas, levanta, e segue. Sam Fuller foi um grande construtor de grandes metáforas. Assim como em Shock Corridor, - fazendo alusão ao manicômio - a pequena cidade de Grentville em The Naked Kiss é microcosmo da América. Com atuações magníficas, planos inesquecíveis, metalinguagem salutar com os gêneros hollywoodianos, o artista maldito assina seu último filme nos EUA antes de partir para a Europa. Ninguém critica mais a América do que os americanos. Fuller nos revela, com sua câmera desnudadora, a podridão da hipocrisia americana. Com seu habitual irônico humor negro, nos apresenta a cidade com uma bela faixa, que nos faz rir: “Desfile de moda para crianças deficientes. Clínica Ortopédica de Grentville”. O contraste que o diretor estabelece entre o “submundo” e o “outro mundo” é exagerado arbitrariamente - mais uma carta irônica na manga do sátiro. Quando Kelly (Constance Towers), mulher dos dois mundos, se integra ao outro mundo, as cenas atingem o paroxismo do confortável. A dona de casa onde Kelly se hospeda é tão doce que chega a ser risível. Mas nada é simples nos filmes de Samuel Fuller, nenhum personagem é apenas um estereótipo. Todos são símbolos, mas carregam vida. Todos sofreram ou sofrem alguma tragédia. A dona de casa, por exemplo, é solitária, o homem que esperava não sobreviveu à guerra. Griff (Anthony Eisley) é como Kelly, transita entre os dois mundos. É mais frio, mais desconfiado, sem ilusões, mais podre, mais honestamente podre: o herói fulleriano por excelência. O diretor, analista emocionado do ser humano e suas paixões, trata, pela primeira vez na história do cinema, do tema da pedofilia. Grent (Michael Dante), supostamente um homem caridoso, rico, moralmente perfeito, é também um pedófilo. Apaixonado por Kelly, aceita se casar, mesmo ciente do seu passado “bombom”. Kelly, porém, quando aceita, desconhece seu presente doentio. Grent acredita que eles – anormais – podem se acertar, ser felizes e aceitar as inclinações mórbidas, assim como os passados sujos. Ela não entende assim, não aceita sua doença, não aceita acordo, nem sequer cogita a possibilidade. Como um doce piano que esparrama a melodia triste da anunciante tragédia, ela ergue a mão e o mata. Seu mundo rui mais uma vez. Quanto tudo parecia perfeito como um musical de Hollywood, num happy end com música-tema, o mundo ruiu, de novo. É o noir.


A construção da cena da morte de Grent é o atestado da genialidade do diretor, e permite a anatomia de seu estilo incomparável. A sequência começa com toda a alegria de Kelly caminhando entre crianças com sua simples caixa de papelão contendo seu vestido de noiva embaixo do braço. Ao adentrar a casa de Grent a melodia que toca é a que nos emocionou minutos atrás com sua mensagem de esperança e amor (mesmo sendo paraplégicos – marcados pelo destino – podemos amar e ser amados, mesmo sendo uma ex-prostituta do submundo). Fuller nos faz acreditar, nos emociona, nos comove. Há um close no rosto encantado de Kelly, a câmera flutua, ela está no céu, tudo está perfeito Não há corte, o seu rosto se modifica, de repente fica muito sério, ela olhou para baixo e viu algo que não lhe agradou. Não sabemos o que é. O contracampo nos mostra o close de uma menina. Uma panorâmica nos mostra o saltitar daquela inocente criança que sai porta a fora. Voltamos ao close de Kelly, Brent – também em close – aparece. Seus rostos preenchem a tela, é o confronto de faces, nada mais importa no mundo para encampar. O campo/contracampo acelera denotando a tensão, e elevando a emoção. Ela está furiosa, ele continua com sua cara que estranhamos desde o começo e não sabíamos o que era. Kelly – com sua experiência de submundo – deveria ter acreditado mais em seus instintos (que atestaram o “naked kiss” de Brent: a marca do pervertido). Mas aquela mulher não consegue não sonhar, ela precisa de ilusões. Tudo que ela queria era sair do submundo, onde ela sabe que a felicidade é impossível. Ele – que vive no outro mundo – porém, também faz parte do submundo... descobrimos que ninguém está isento de sujeira, a única diferença do submundo para esse é que aqui tudo é velado. Com a mesma emoção que Sam Fuller nos elevou à crença na beleza do ser humano, ele nos joga no abismo das culpas psicológicas, das doenças sociais, do ódio, da dor e da tragédia. Numa das imagens mais poéticas da história do cinema, Kelly, após derrubar Grent com uma telefonada em sua cabeça, enrola o vestido que deixou cair durante o ato, e redobra o véu de noiva – símbolo da pureza – que passou a velar a pedófilo, já defunto no chão.


Kelly é presa por assassinato. Durante a correria para provar a sua inocência, velhos desafetos vem acertar suas contas, incriminando-a. Griff - o bruto sentimental - é ambíguo o tempo todo quanto às suas crenças acerca do caráter de Kelly. Ele sabe que ela é que nem ele: habita os dois mundos, mas não pertence a nenhum. Ele sabe que ela é capaz do pior e do melhor. Não há parâmetros. Herói num segundo e anti-herói no outro. Esse é o ser humano: o que viveu alegrias e tragédias: o adulto. Só uma criança, que ainda não aprendeu a hipocrisia, pode atestar a verdade. É o que acontece, e Kelly é absolvida. Está livre para deixar a cidade. Na saída, a população, imóvel, a olha com ambigüidade. O primeiro plano da cidade volta, a faixa que nos faz rir novamente é o golpe irônico final do maldito e eterno Sam Fuller: “Piquenique anual da câmara do comércio para crianças deficientes. Clínica Ortopédica de Grantville”... créditos... ela segue... fade-out.


Mateus Moura.