segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sobre ensaios sobre a luz nas trevas


Da epistemologia:
Não me interessa a causa operária do peão, a poderosa ferramenta do cavalo, a bondade divina do bispo ou a amplitude de artilharia de massa da torre, nem mesmo a desenvoltura graciosa da rainha me interessa; e, sobretudo, não me interessa o xeque-mate! Me resguardo à humildigna posição de pôr em xeque. Só assim alcançarei o meu objetivo: deixar em alerta o outro, através da engenharia da estratégia (ou do blefe?).

Sobre ensaios sobre a luz nas trevas

“Não é na atmosfera que se realiza o grande fenômeno da luz, é nos olhos organizados para vê-la.” (Eliphas Levy)
“E agora, Lanu, tu és o autor e o espectador,o irradiador e a irradiação, a luz no som e o som na luz.” (Verso do Livro dos Preceitos de Ouro)
“fragmentos de verdades em um teatro de ilusões” (Satyr)
"A criatividade é uma percepção diante do vazio"(Burroughs)

Criação é luz, o espectador um prisma; a obra gira como uma manivela; projeta-se em julgamento, sob o filtro do gosto, um tom de cor. Existem milhares de tons; mais frios, mais quentes, mais duros, mais suaves... e tudo é superstição: a crença de verdade sob um ponto de vista (ou a super-extimação de si – o que chamamos “verdadeiro”). Construímos conhecimento – graças há deus – porque produzimos uma substância, maternal por excelência, denominada fé – a enzima da esperança.
Se a Inteligência tem como mãe a Fé, o Saber é o pai. Se o Saber não a fecunda, a Fé se perde em devaneios estéreis de uma mal-amada em estado de decadência psicótica e esquizofrênica. Vira fanatismo. O Saber sem a Fé para acreditá-lo morre cínico de si mesmo, caótico revoltado, como haveria de ser um solitário e patético mar sem o céu para dividir com alguém a companhia da existência.
A ALÇADA DAS INTERPRETAÇÕES: nos afoga porque não pode nos salvar. Nas melhores águas não nos contentamos em apenas pescar, mergulhamos sobretudo, de fato. Procuramos olhar mesmo os peixes no fundo dos olhos, face a face, sob o visor de nossos escafandros... pelo inútil prazer de confrontar um segredo belo e imperscrutável. 
No sonho de assistir a retina em instinto & pensamento não existe o duelo verdade e mentira, há apenas o movimento cintilante da córnea, e o milagre da construção da Imagem no mistério da mente.
Mas o que é construir uma Imagem???? Eu,construí uma imagem / você, vai percebê-la. Ser é perceber, ser é ser percebido. Quem constrói imagens é um Criador, quem as enxerga é Espectador. Criador e Espectador não são Profissões!!! São Estados – que podemos habitar.
Mas o que é CONSTRUIR UMA IMAGEM??? É ENCONTRÁ-LA!
Não inventamos nada, transmutamos. Damos cria ao um, para figurar no infinito. Re-produzimos. Assim parimos para a Cultura, e juntos todos somos a Humanidade – (o espelho quebrado da Natureza.
MAS O QUE É ENCONTRAR UMA IMAGEM???
Onde vivo sabem tudo isso sem precisar entender. Plácido encontra uma imagem à beira de um igarapé, ela recebe o nome de Nossa Senhora de Nazaré. Com essa imagem, rituais, rituais, rituais, sentidos, sentidos, sentidos, fé, fé, fé, saber, saber, saber, reciprocidade, reciprocidade, reciprocidade,... é assim a Imagem, terminada sua construção: vivo engendramento. Em Chaves, no Marajó, foi encontrada uma imagem em uma raiz no mangue, uma “raiz-imagem”, que recebeu o nome de Nossa Senhora da Mexiana. Recebeu adornos,adornos, adornos, signos, signos, signos, cantos, cantos, cantos, altares... é assim a Imagem, para ela Ser precisa ser recebida. Uma imagem pode ser visual, sonora, tátil, olfativa, gustativa, mental; pode ser feita de madeira, plástico, tecido, corpo, luz.
Imagem encontrada por Plácido às margens do igarapé Murucutu em 1700. Hoje é encontrada numa redoma de cristal antiprojétil no Glória da Basílica de Nazaré
O processo cinematográfico, normalmente, encerra 4 grandes ciclos de mortes e reencarnações. No primeiro nasce a idéia, que morre no papel, ou num escaninho da memória; no segundo, captura-se da realidade as idéias do escaninho que agora são gravadas, e morrem na película ou no cartão magnético; no terceiro, recolhem-se esses fragmentos, dá-se uma última forma sequencial e o filme morre, mais uma vez, numa lata de negativo ou como arquivo guardado em um computador ou dvd, para, então, estar apto a renascer todas as vezes que alguém o colocar para rodar. Aqui é onde se faz a última viagem, a volta à mente, o retorno ao lar. Quase como uma profecia: da mente saístes e à mente retornarás. Eis a metempsicose cinética, metamórfica por excelência, milagrosa por essência, quixotesca em sua errância, luminosa em sua obscuridade.   
Parece que falo de religião quando falo de arte?
Uma arquitetura de culto, a postura de reciprocidade, a imagem em altar, a vertigem-devaneio-barravento. De que falo: uma festa, uma missa ou uma projeção?
Falo de uma celebração: à epifania dos sentidos, ao milagre da transubstanciação, à crença da criação como realidade, à luz, ao olhar. Há diversas liturgias para este fenômeno de mergulho enteógeno ontológico, rituais que se utilizam de batuques, de danças, de substâncias, de palavras... um dos mais famosos é o diáfano Cinema.   

Mateos

p.s: Uma voz (no fim do túnel do texto) diz, vejo: Audiovisual: a menos que ouças não poderás ver, a menos que vejas não poderás ouvir. Ouvir e ver: eis o primeiro estágio. E a verdadeira Senda.
 Imagem encontrada no filme Permanência (1976) de Vicente Franz Cecim - escritor, cineasta e alquimista de Andara


*publicado originalmente na "Recibo Jambu nº15" - http://issuu.com/recibo/docs/recibo_jambu_online
   

domingo, 7 de outubro de 2012

O registro e o nada


“Sou um cara de fala atropelada
quando tomo bolas
como não as tomo
Sou um cara de feições caladas”
(Ventre Livre -Fellini)

 Há algum tempo que o espírito que se acorda em mim não toma como prioridade a “crítica cinematográfica”; supostamente matéria, que este blog, de início, se pôs a, sob os filtros subjetivos, iluminar objetivamente?

Primeiro post foi assim:

“segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Alo alo

Sobre cinema, blog pessoal, liberdade de falar disponibilidade de ouvir, publicação informal, simples e sério, contradição, eu.

Mateus Moura.”

Desde cedo o falar sobre cinema me interessou sob a forma de abordagem mais próxima do ensaio... “cinemateusmoura.blogspot.com.br”... junção em um do meu nome social ao cinema, era, profissionalmente, o caminho que tinha escolhido trilhar, o máscara que, na ágora, tinha elencado vestir. Ainda é assim? Ainda é por isso que o tal do espírito se coça, ou que o tal do ego se apresenta?
“Si né” mateus moura, talvez fosse mais honesto. “Si” sendo esse olhar-espelho pro fundo é terno. “Né”, um empréstimo do francês: o , que em português se grafa “nascido”. “Mateus Moura” a grafia-assinatura da máscara social, e que já se encontra até anacrônica, já que assino “Mateos” aqui, desde http://cinemateusmoura.blogspot.com.br/2010/10/das-nuvens-etereas.html.
Enfim, é inevitável, pelo menos na minha parca experiência, que o fluxo atravessa todas as correntes da coerência. É inevitável que a unidade daquilo que flerta com o irracional, seja, no mínimo, de formato geométrico mais curvilíneo que um quadrado. “Se, né Mateus Moura?”.
Se.
Se reconheço, de dentro olhando como de fora, que já não sou mais o mesmo, nem nunca quis um futuro onde fosse o mesmo, é preciso, ainda com um esforço da razão (a mais misteriosa das ferramentas), esse exercício da escrita (que conjuga trampolim e fotografia, o salto e o congelamento).   
Nesse meio tempo, de uns anos pra cá, o espírito arrumou sarna no teatro, na música, na religião, na comunicação, na performance, na permacultura, na literatura. Todas essas experiências alimentaram o que penso sobre o mundo e as imagens. E se escrevo muito menos sobre cinema hoje é porque estou ocupado a pensá-lo dentro de sua própria linguagem. E fora. Que sempre estou a Olhar todas essas áreas, e a construir imagens, e a decupar pensamentos, e a engendrar encenações e em me admirar com o registro e seu poder de transfiguração. Em todos esses outros campos e linguagens sou, indelevelmente, um bicho que foi picado pelo cinema. E, não obstante, sou aquele que vai trabalhando a linguagem audiovisual diariamente e que é influenciado por todas essas outras experiências.  
Sim, ainda é o Cinema a Grande Sarna, e eu um vira-lata mazoquista a mordiscar meu próprio couro... cinemateusmoura ainda faz sentido, mas esse blog não é mais apenas sobre cinema (há algum tempo), mas sobre esse olho que carrega o cinema como cicatriz, assim como o nome.
Mas, relaxa, que toda essa galhofada morfológica não é nada não, é pura punheta intelectual, com infantis fins de gozo ontológico. Exercício de puro engodo. Mera digressão simbólica. Não muda nada.  apenas registro dessa volta no círculo do vazio.

É que cada dia mais me interessam esses dois fenômenos: o registro e o nada.

“Gosto de bicho
Gosto de gente
Quando estou contente
Quando estou contente, sou um bicho de olho reluzente”
(Ventre Livre -Fellini)
Mateos.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

/matou o cinema #hà banda dos compositores


Percebendo-se como gênero fique são, MATOU O CINEMA E FOI A FAMILIA, durante seus 5 meses de existência, descobriu vários sub-gêneros; os já visíveis e não nomeados, e os que foram nomeados para se tornarem visíveis.
#parábolas, #sessões cinegráphicas, #imspressões, #grimório, #navegAções, #crônicas, #perifeerias, #autos, #jornalixmos, #reminiscências, #diá   rios
Foram os que surgiram até então, todos com o interesse de abrir trilha para si e para quem quiser se aventurar pelas mesmas matas (e/ou análogas).
Todos esses caminhos nasceram obedecendo à simples urgência de existir, seja por uma resposta política imediata a partir de um fato social (#jornalixmo, #crônicas), seja pelo prazer de se admirar (#sessões cinegráphicas, # imspressões, #diá   rios), seja pela construção de memória/micro-história (#navegAções, #reminiscências), seja pela experimentação e síntese em busca da expressão do silêncio lírico e/ou épico (#grimório, #autos, #parábolas). MATOU O CINEMA E FOI A FAMILIA é um conceito, uma prática e um canal (www.youtube.com/matouocinema).
Tudo o que o cinema sempre fez até hoje foi criar - no suporte da imagem - memória de certos olhares.

#hà banda dos compositores
Este sub-gênero fique são surge da urgência em revelar certos seres que criam linguagem e universos poéticos abrindo melodias e versos.
O “Objeto de 3 coisas”, não obstante, é subjeto de 3 sujeitos: um habitat, e a sua alma nas coisas; a tradução dessa alma pelos humanos, que ali inventaram isso que denominam ‘alma’; o questionamento acerca do que realmente quer dizer melodia, ritmo, harmonia, ruído e silêncio.
“Rede roxa”, “Cadeira de mogno” e “O balanço” são as 3 coisas (objetos, subjetos, músicas, ideias, formas, imagens, construções) que compõem esta peça áudio-visual, que intenciona, entre outras coisas, registrar o universo poético do compositor Fernando Paraense.
#hà banda dos compositores pretende seguir trilha revelando notáveis. Olhares sobre poéticas se farão ouvir. Hàs construções, para trazer à tona as realidades da linguagem.

Mateos.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

MANIFESTO-ME hÀ FAMILIA (no rastro do que sobrou)


0.
Sinto as reminiscências em meu Imaginário se comportarem como pólvora. Os disparos vem em forma de imagens (ou fatos?). Disparos talvez feio festim: divertidos e perigosos, luminosos. São fogos de artífices, fogos-fátuos. O oratório está aberto: 

1.
O homem e a câmera só podem ocupar um espaço (no tempo). A gravação disso na eternidade é transformar em linguagem o fragmento do mundo exterior visível e auditivo. É o milagre da transubstanciação. É alquimia na senda do realismo. É quando olhamos para o símbolo e para o fluxo e ambos fazem parte da mesma matéria-espelho, onde encaramos nossos olhos e o fundo.
O que sobra quando abandonamos todos os ornamentos é a mera sintaxe de justapor imagens e sons, e a mera aventura de fixar num suporte a realidade que certo limite de luz faz a câmera e o humano ver e certo limite de hertz que faz o gravador e o humano ouvir... Então: o que gravar (e como) neste tempo que se derrama? - é a única inescapável questão durante o ato de filmar (estética por excelência: pois é sobre como sinto/e traduzo o mundo do seu/meu/nosso âmago). 

2.
Não to falando de estética da fome, do sonho, do lixo, to falando de “estética da família”, ela engoliu tudo isso, e a Mídia, a Ciência, a Política, a Natureza. Essa Família vive na “qualquer casa”. Ela linka, sampleia, antropofagiza, vomita, mata, ama. O gênero é “fique são”, é uma loucura lúcida do rizoma chamado liberdade. Toma a ilusão por clareza, a clareza por ilusão > encruzilha > gira ~ é a Roda da Esperança, a palheta estelar da Fé.

3.
A proposta de pensar a afirmação da negação da hegemonia do convencionado Cinema, como essa própria frase explicita, não é negação, mas uma afirmação, assertiva e calma, ousada. A Familia não nega nada, apenas assume a posição de negadora, da que não precisa de nada. Logicamente não deixa de deglutir tudo que não precisa, é canibal e glutona por excelência. Quanto à religião: Não, a Família não cultua Entidades, ela cultiva! : encontra a semente, planta, rega, colhe. No instinto do religare, entre outras práticas, se encontram o culto das imagens e a sacralização do ritual, arcanos maiores do fazer cinematográfico. Cinema, Religião e Família é um dos triângulos que regem a geometria cósmica da Eternidade.

4.
Só existirá um jeito do agora de revolucionar. E não será matando a família (de novo) e indo ao (novo) cinema, mas matando o matou o cinema e foi a família assim como o matou o cinema e foi a família matou o matou a família e foi ao cinema. É preciso matar sempre, criativamente. Matar é a extremidade do passo além, da mudança que deve acontecer; e sempre uma volta ao lar, um retorno ao ser.
É preciso sempre voltar a Família, para matá-la.

*fragmentos de notas que não entraram na edição final que fiz do texto "Manifesto-me hà Familia", publicado recentemente na Revista Gotaz (http://gotaz.com.br/)

domingo, 16 de setembro de 2012

MANIFESTO-ME hÀ FAMILIA


Se é do meu Seio que bebem, e ao meu Ventre que retornarão, é no meu Corpo que habitam, e é nele que, levados, rolam, jogam, batem, abrem os caroços de tucumã; engendram minha imaginação. E se sonho todo o tempo, pois sou vida-prima assim, feita de órgãos imaginários, é devido aos devaneios e ações destes seres, vários. Se me chamam Belém, Santa Maria do Grão, cidade das mangueiras, Metrópole da Amazônia, Gaya, não posso debater, me debater, mas amar, receber, ter. Fazer o quê? Nós, cidades, com açaí ou sem açaí, somos todas farinha do mesmo saco: a Família. 
MANIFESTO-ME hÀ FAMILIA

Eu:
Por que utilizo a linguagem verbal para pensar, também, a audiovisual? Porque é assim que o espírito em mim se movimenta. E posso ser infiel a tudo, jamais ao espírito...
E falando em espírito, Espírito, quem fala aqui é uma voz/corpo id-entidade, Um anônimo membro-participador da Família.
Esse não vem falar nada de novo, vem falar sobre o novo que ta aí; com palavras de um agora.
Diz:
O Cinema está morto, e foi a Família. Agora existe outra coisa, que parece retornar em espiral à primeira arte do cinematógrafo, mas que já é outra coisa. O Cinema, mesmo morto, ainda sobrevive, os zumbis sempre existirão; vagam e são belos, e ainda deixam rastros...  Mas já há outra coisa, que existe também no agora, outra coisa que não é o Cinema, mas que não se nomeia de outra forma que não Cinema. É/ou Audiovisual.
De fato:
O que aconteceu é que a Família tomou as rédeas da cerimônia... não é mais a passível receptora das imagens dos iluminados, não se inclina mais às vozes dos sacerdotes, não se espanta mais com o truque dos prestidigitadores, não se encanta mais com o delírio dos profetas... a Família profanou o culto, trans-auratizou a Entidade... a liturgia sacra metamorfoseou-se em festa popular... e é nesse momento que o índex parece receber sua vingança; os Livros, as Regras, as Estéticas, toda essa Tradição Maravilhosa que, não obstante, sufoca o Novo, está sendo queimada na fogueira de São João, espancada pelo porrete de Exu.
A voz murmura, à vós?:
Aqui é o distante do Brasil, não tem contexto econômico apropriado, não tem técnica ou maquinário avançado, não tem sobras de expediente temporal adequados para fazer o tal Cinema... Ótimo! Matemos o Cinema, o tal... Não fui eu, nem tu, foi a Família! Há Tao! 
Foi a Família que empunhou câmeras para filmar seu diário de impressões sobre a realidade, foi a Família que resolveu comunicar sentimentos a outrem na forma audiovisual, foi a Família que resolveu fazer denúncias do que considerava injusto a partir do rifle de captura do presente, foi a Família que despudoradamente registrou os seus momentos mais íntimos, mais perversos, mais sacanas, foi a Família que quebrou os tabus, a indústria, a elite, foi a Família que ousou conectar todo o mundo numa rede invisível para compartilhar universos.
A Família é bagunceira, é espontânea, é barroca, é barraco, é canibal, é bárbara, é aberta, é pagã, é pã. Lincha o bandido sem culpa, degola a galinha, assassina o parente, invade a propriedade, inventa na miséria, ocupa a rua, corteja pelo centro, escarnece do imposto, avacalha o plausível, se embriaga de si. É a insurrecta incoerência lúcida do revolucionário, a sofisticada intimidade intuitiva do primitivo. Fusão entre o diletantismo militante e o militantismo diletante, o Cinema feito pela Família parte da necessidade primeira do prazer interno de religamento com a existência e o ser. Seguindo os princípios da sevirosofia (sabedoria do “se vira”), a Família é uma entidade com fins criativos-destrutivos (enfrentativos). Erótica, ótica, ouvidos abertos, tapada, nós-outros. Somos todos atores do nosso complexo. Édipo. Transeunte.
A poesia sonha, deus realiza, a máquina eterniza, o homem fabrica. Na dramaturgia do caos, atos. A Comédia Humana & Imortal, dissolvente de estereótipos, acredita acima de tudo no acaso. E como o Cinema não está no campo das artes, mas no campo das linguagens - como a língua escrita não é só feita de romances, dramaturgias e poesias, mas de ciência, filosofia, bula, diário - assim, aprendeu a Família esta linguagem, e hoje faz cartões, bilhetes, pixos, garranchos, manifestos, respostas, postais. A Família ta cheia de cinegraphistas, esses photógraphos dos vinte e tantos frames por segundo, vulgarmente não-conhecidos como os embusteiros do tempo.
A Vida é uma ilusão, o Sonho é uma ilusão, o Cinema é uma Ilusão. Só a Respiração é Real: o movimento de sucção do Mundo para dentro de um Ente (inspiração), a pausa, e o movimento de expiração (quando o Ente devolve ao Mundo o que o Ser formatou no intervalo). Não é um movimento MEU, nem TEU, é um movimento da VIDA, que participamos ademais, às vezes. A Criação é algo extremamente individual & extremamente coletivo: é o símbolo da alteridade. O que chamam de “estilo” é figura retórica para expressar o que é da categoria do acidente (o ego em corpo que se configura enquanto identidade). A substância que NÓS somos é a Família, eu/tu/ele é um acidente dessa essência. Um no Zero. 0
A Voz diz, à vós diz:
Não é tão-somente acerca de Arte o que está acontecendo, mas de um novo Realismo, a partir da realidade e das ferramentas. Tecnologia nova, linguagem antiga (se reformulando: estética não estática, antes em busca do extático, é a ética de auto-descoberta-do-outro).
Porque a Família à Família grita:
A-vida-deve-ser-um-dado-lúdico. Não deve haver diferença, na tela, entre o real e o imaginário; assim como não deve haver diferença, para a mente, entre a reflexão em conceitos e a ação em formas: todos devem caminhar para as essências. Entre-mentes: é o convite de entrar; viver, de novo e sempre, o que é o primeiro de tudo: a mentira – só esse atravessamento é verdadeiro. “Fazer arte” é se exprimir com a responsabilidade da liberdade sendo linguagem. É naturalmente um movimento ético e simbólico (estético), da alçada do delírio & do artifício. É onde, finalmente atravessado no/pelo mundo, o ente está pleno em sua solidão, e de fato é o Um integrado. A Família é o Zero. 0000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000. Somos Um no Zero.
A Família não tem infinitos olhos, mas infinitos olhares.
Do meu olhar (é só minha forma de apontar a vida... flecha) do agora, saiu >


< E de enfim, e depois de tudo isso?
Zero. Um. Vaga.
Neste mar de potência, por que rio remarás, cabano, caboclo, urbano, humano? Quem és, a que fostes destinado?, pergunta a cidade.

*ilustração de Leandro Bender
*publicado na revista Gotaz (http://issuu.com/gotaz/docs/revista_gotaz_final_web/5) 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Só mente imagens (É ternamente Rollin)

Texto para a sessão do MATADOURO, de “La nuit des traquées” de Jean Rollin

“O natural é tão falso como o falso. Somente o arquifalso é realmente real” (Rogério Sganzerla sobre José Mojica Marins)


Quem disse que a sensação ao ver um filme deve ser eternamente essa análoga à de acompanhar uma história como seguimos um romance em sua leitura e vê-la como sentimos o teatro em sua ação? Quem disse que a sensação não pode ser aquela análoga à da contemplação de uma fotografia de Duane Michals, ou à emoção de ouvir uma interpretação de Wes Montgomery, ou ainda o prazer de compreender um conceito desenvolvido por Immanuel Kant?
E por que tantas analogias com processos contemplativos de outras artes e saberes para falar de cinema? É por que parece ser o principal problema dos olhos presos: o condicionamento a uma forma engessada de contemplação. Isso é fruto de uma imposição de uma “monocultura Cinema Clássico”, do “latifúndio Hollywood”, ou de uma particular “preguiça ao novo”, de uma natural “repulsa ao marginal”? A culpa é de quem? O que importa é que os filmes de Rollin são litros do melhor colírio para a libertação dos olhos, e, logo, da imaginação.
Inspirado pelas histórias fantásticas de quadrinhos, as séries de cinema de aventuras, os quadros surrealistas e os pesadelos inesquecíveis de sua tenra infância, Jean Rollin legou o exemplo contundente de que a honestidade à invenção que ouvimos de nós mesmos é a maior herança que podemos deixar à humanidade.



Da gang dos cineastas “exploitation” - gênero de filmes de baixo orçamento que tem como principal característica o uso de apelativos comerciais como a violência gráfica e o erotismo exacerbado - saíram grandes cineastas, dos anos 70 até hoje, cineastas que atravessaram tais concessões para ressignificá-las esteticamente, atingindo o belo através da catarse da paixão corporal e da explosão dos sentimentos. Rollin, considerado “cineasta classe Z”, segue um caminho ainda mais tortuoso. Em seus filmes, cenas de violência ou de sexo existem aos montes, mas são cine-encenadas não com o interesse de deleitar, através da transparência do aparato, o espectador ávido para atiçar suas pulsões escópicas pervertidas; ele propõe a opacidade, o distanciamento, o olhar contemplativo para a condição de um ser e de um cinema. Pobre, Rollin não escamoteia os poucos recursos de sua produção, antes escancara... revela assim não o “tosco”, o “mal feito”, mas o “artificial”, o “verdadeiro”... nas cenas de sexo tudo é falso, escancaradamente falso, não lhe interessa que o espectador se envolva com o sexo sensualmente, mas enquanto imagem em construção; propõe um olho que lê, que tem consciência que sonha. Seus atores são amadores ou vem das fitas pornôs que realizava com pseudônimos para poder fazer seus filmes mais autorais. São, na verdade, antes de atores, modelos, e antes de modelos, corpos, e antes de corpos, imagens. Briggite Lahaie, sua vampira mais famosa, era vista por ele como uma “estátua viva”, ou uma “pintura viva”, não tanto uma atriz.



Rollin transgrediu tudo, mesmo convivendo no meio mais transgressor. No gênero horror transgrediu sua mitologia, criando posturas e relações inusitadas de personas como o vampiro e o morto-vivo; transgrediu também o tom, renegando os efeitos atmosféricos fáceis para causar medo ou repulsa, perseguindo acima de todos os tons o do feérico mistério – a essência da beleza do sonho; transgrediu também a representação naturalista ou clássica dos filmes deste viés, e abandonou qualquer explicação de traço psicológico para seus personagens ou condições de verossimilhança para seus enredos. Reinventou tudo isso, e ao invés de contar estórias mais filosofou acerca do sublime e da morte, assim também ao invés de pintar quadros figurativos mais coreografou música entre aparições de olhos e gestos de corpos.
Alguns cineastas atingem o cinema, outros partem dele. Jean Rollin, cinepoeta surrealista de primeiro time, AMADOR no sentido buñuelístico da palavra, faz parte dos que partem da essência. Se seu cinema é pouco reconhecido pela maioria do público e da crítica é porque este artista amou demais as imagens. Amou além de todos os vícios que o cinema engendrou enquanto cultura.

La nuit des traquées (As fugitivas). 1980


“O misterioso vírus que acomete os personagens de La Nuit des traquées (1980), extraindo-lhes a memória, é outro exemplo de desconstrução do gênero por Rollin. Filmado numa Paris entre a madrugada e o amanhecer, num imponente edifício comercial vazio, o thriller de perseguição que o título ("A Noite das Perseguições") sugere converte-se num poema visual entre o grotesco e o sublime, no qual as buscas dos protagonistas são “apagadas” constantemente, rompendo com o desenvolvimento narrativo convencional.” : Assim, o crítico paraense Adolfo Gomes - quem me apresentou o cinema de Jean Rollin -, descreve o filme. Adolfo considera o cineasta francês o “Brecht dos vampiros”.
“Era noite. Veronique estava nua. Ela me larga. Eu estou perdida na noite. Totalmente só. E depois, a luz como um trem. Enfim, é tudo.” Assim, tateando a mente, Elizabeth (Briggite Lahaie) persegue imagens.
No entanto, tudo só existe no instante. O resto é vago, é dubitável, é memória. Só o presente é real, só a duração é.
A fotografia capta um fragmento da realidade exterior, o cinema capta a duração de um momento (o presente em fluxo). E a obra, enquanto feérie, é a mentira enquanto realidade (ou a verdade da invenção); o cenário é “La Defense”, o principal prédio do maior centro financeiro de Paris. Ele se transforma na “Torre Negra”, onde zumbis transitam entre corredores. Paris se transforma num amontoado de torres. Da torre onde habitam esses seres se vê apenas o Arco do Triunfo como esperança.
Toda grande ficção científica é a metáfora clara extremamente enigmática da realidade que cerca a existência do autor. Fornos crematórios, trens-fantasmas, a angústia profunda da noite, a sensação de desorientação e da perseguição de forças burocráticas, os olhos vazios, os homem ocos, a higienização dos diferentes, a reação nuclear - toda relação que se possa fazer com a vida moderna não é mera coincidência.
Jean Rollin foi, no cinema, um dos mais originais arautos do insólito, do encantamento, do fantástico, do horror, do sonho/pesadelo. Foi também um dos mais honestos estetas, um apaixonado pela beleza das puras imagens.  Filho do onírico, criado pelo bizarro, perseguiu o sublime. Não foi aceito pela cultura. Seguiu, rumo à arte. Como Robert, deixou-se conduzir pela musica dos violinos que só a trapaça das musas-vampiras pode escutar. “Se se portar bem, encontrará sua amada”, diz ela. Robert dança, Rollin dança.
E quando perdemos o senso do gesto, do equilíbrio, da imagem justa, quando o que nos ofereceram enquanto Beleza não encaixa à essência que escorre pela nossa imaginação? Aí é preciso reconstruir, instituir – nem para si, por soluções. É quando fechamos os olhos, olhamos a memória vazia, e inventamos imagens para poder ser enquanto linguagem. Imagens de um passado, um futuro? Apenas imagens. Somos vivos enquanto somos tomados pelas imagens, e quando apenas tomados pelas imagens – como quando vivenciamos a experiência cinematográfica - morto-vivos. Somos morte em vida, assistindo; acompanhando a morte como vida, na tela.  A única coisa que existe é o instante presente. O imediato.
A última cena só pode ser comparada em beleza no cinema de horror na cena final de The Beyond de Lucio Fulci.
Ela caminha no trilho do trem, talvez atrás da primeira imagem que teve acesso durante o filme, quando Robert, com seus dois faróis, surgiu para resgatá-la da fria noite que é o passado (aquilo que não existe). Do trilho caminha para um grande portão de ferro, o abre, e começa a travessia da ponte. Ela não é mais humana, animal ou planta, se arrasta sem cérebro, alguma força a arrasta por aquele caminho, alguma força gera a imagem. Robert atravessa o portão, leva um tiro na nuca, e agora peregrina o caminho do além. No mesmo estado podem caminhar, sem precisar se lembrar do nome um do outro, nem outras convenções. Não há mais máscaras, identidades, angústias, doenças ou prazeres, apenas a eternidade, enlaçada pelas mãos.
Mateus Moura (APJCC – 2012)

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Elegia?


À objetividade.
-Ontem tinham 5, hoje 4, será que ninguém se interessa mesmo por 'cinema paraense' - nem quem faz, ou participa do ciclo de alguma forma?
-Faltei o primeiro dia porque estava trabalhando, afinal a programação começa às 17h... será que é por isso que o público não está frequentando?
-O Cine Líbero Luxardo está alugando o seu espaço para uma Mostra que divulgue o cinema paraense ao invés de apoiar (ao menos com isenção de pauta)?
-Quem será que vai aparecer amanhã?
Foram essas perguntas simplórias que caminharam pela minha mente até aqui. E também as imagens, de uma Belém de outrora com discursos de outrora, de ficções descobertas em estilos próprios, de modelos que não expressam a complexidade da região (visível e invisível), de espaços de experimentação abertos por ousadias e idiossincrasias, de id-entidade conterrânea complexa e multifacetada, etc.
À subjetividade, alimentar-se do que frutificou a terra em que se pisa, ajuda na percepção do todo (e logo de si), do passado (e logo do futuro).
Agradeço o presente. 

domingo, 22 de abril de 2012

pequeno ensaio Pro Ensaio Geral



Qual melhor metáfora para exprimir o non-sense da Vida senão uma eterna preparação para o grande espetáculo: a Morte?
Qual melhor metáfora para expressar a essência do Teatro senão a de um espetáculo que inicia antes do ensaio geral (que já é um ensaio geral, e que sempre será um ensaio geral, porque teatro não se finaliza jamais, ele só começa e termina no é)?
Pro ensaio geral ensaiamos sempre, é a metáfora perfeita da luta do improviso contra o destino, da busca da imortalidade na arte contra o tempo que carrega nossos corpos.
Não existe coisa mais séria do que um conto de fadas. Este, grotesco maravilhoso, sublime encantador, revelador alegórico, não propriamente ‘fala’ sobre o ‘Rito de Passagem’, antes 'mostra' – ouve-se nos intervalos silenciosos. Ação e Contemplação. Estamos, enquanto público e espécie humana, durante quase 1 hora, envolvidos pelo manto da Morte – nosso maior véu. Fera e atmosfera.
O ritual proposto é uma última dança: de olhares, de gestos, de lembranças, de humores, de maus resolvidos assuntos, de inerentes afetos, de conflito/harmonia/movimento entre a Mãe e o Monstro, ou entre a Prole e o Dragão. É um show da dupla Mauricio-Sandra (que também assinam a dramaturgia).
Pro ‘teatro de fanzine’! – termo que ouvi da própria Sandra Perlin. A exuberância reciclada e a força expressiva do figurino e da cenografia de Mauricio Franco e da iluminação de Malu Rabelo é um bálsamo para o olhar, uma lição para os ouvidos. A direção é de Vandiléia Foro: corpo, ritmo, mise-en-scène, num cubículo intimista, numa ladeira frenética, rumo ao fim.
Durval, esse misterioso personagem que ilumina as emoções, desliga as luzes, e já podemos aplaudir de pé.
A peça acaba num sábado qualquer e vamos sentar na frente de nossas casas, papear sobre arte e vida, e morte. Inspirados por esse balde de suor e lágrimas traduzido em comédia humana, respiramos gratos por tanta verdade e encantamento. Se esses não são momentos históricos não sei o que pode ser.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Texto para Filme Demência, na estréia do MATADOURO

Um cinema para ser inspirado
“A utopia, seja ela o que tantos viram ou não no experimental brasileiro, simplesmente transfigurada em atopia, deslocamento da retina, de uma ótica cultural que imperou antes dele. Coube a Carlão deslocar (atopisar) o experimental de seu terreno minado para a área de todos: não mais cinema de minoria, mas de memória da minoria como brinde à maioria. Maioridade de um tipo de cinema brasileiro? Superação dos borrões, inauguração de uma nova écriture que a massa come e que inquieta os cinéfilos? Quem está vivendo está vendo: a solução do enigma sempre esteve no enigma – vi-vendo.” (Jairo Ferreira – Cinema da Invenção)
Carlos Reichenbach é um homem culto. No sentido mais culto do culto referido à figura humana - aquele que cultiva. Homem nascido após Oswald de Andrade, o cineasta gaúcho é o antropófago moderno por excelência - deglutiu o todo, sem preconceitos geográficos, morais ou estéticos. Carlão é um verdadeiro glutão. Quimera de mil olhos, reteve (quase) tudo: de Godard à Nouvelle Vague Japonesa, de Cinema Novo à Chanchada, de séries televisivas à óperas, de Platão à Jorge de Lima, de Proudhon ao Naziexploitaion... construiu o único olhar que pode valer algo: o seu. E é na emoção de acompanhar as escolhas que gozamos do sentimento próprio da liberdade em ação ao assistir um filme do Carlão. É um dos cineastas mais inspiradores dos que sonham fazer cinema porque sentimos na eleição de cada ideia audiovisual o “homem instituinte” – aquele que produz o efeito por uma “causa interior”, pelo puro “prazer interno”, jamais para agradar ao instituído (aristocrático ou comercial). Não obstante, não nega nenhuma instituição, antes joga com elas; o cinema, para ele mais que para Glauber, são todos os caminhos (de produção, de estética – os princípios éticos, inescapavelmente pessoais, resguardados). Vivenciou na pele todas as dificuldades de fazer cinema no nosso país, e sempre deu um jeitinho brasileiro; afirmar esteticamente sua condição e enfrentar em signo de invenção os problemas como questões foi o maior deles. Não confundindo a questão ética com a patética, vanguardeou, contrabandeou, sobreviveu, expressou-se (sob quaisquer contextos). Hoje, junto com Julio Bressane, Andrea Tonacci e Eduardo Coutinho forma a nata do cinema de invenção brasileiro.
Seu cinema não aspira tão-somente à arte de justapor imagens, movimentar encenações sob a lente, fazer grandes travellings, enquadrar grandes cenas, aspira também à História (através da colocação do Mito em ficções sombreadas por acontecimentos políticos), às Artes Visuais (com suas paisagens e cenários, reveladores externos dos dramas de seus personagens, sem esquecer das luzes e cores, sempre pontuações pictóricas impressionistas que nos abraçam nos sentimentos “atmosfeéricos”), à Música (nunca gratuita, sempre utilizada apenas como imprescindível, e muitas vezes engendrando a própria forma essencial de alguns de seus filmes), à Poesia (transitando livremente do diálogo típico para os típicos vôos líricos de seus personagens, buscando sempre a “palavra falada justa”, sem concessões à preocupações medíocres de “verossimilhança naturalista”) e à Filosofia (referenciando, parafraseando, sublinhando, sobrepondo metafísicas, morais, estéticas de grandes mestres e cafajestes). Carlão, pintando todo o seu grande mural com cores advindas de tintas tipicamente brasileiras, colhidas da vida que observou/vivenciou de perto/profundo, aspirou o cinema como panacéia da síntese, e a síntese como o álibi para a busca da pureza. Chegar na alma através dos “personagens familiares”, na política através dos “argumentos situantes”, na cultura através das “referências decantadas”, na arte através da “câmera~montagem & síntese-outras artes”.
Filme demência, anagrama para “filme de cinema”, é, segundo o próprio Reichenbach, o seu empreendimento mais autobiográfico. Exorciza nessa obra, sem disfarce, pormenores de angústias pessoais, com seu pai e o seu país. Não obstante, o mais interessante, é que realmente, Filme Demência cristaliza a ideia de obra biográfica por excelência do homem Carlos Reichenbach justamente por ser este um “filme de cinema”. Acima de filho e cidadão, vejo que o Carlão é mesmo um “bicho do cinema”, filho dele, cidadão dele. Sua mente, sua demência, todo o seu ser é organicamente ligado, umbilicalmente, a esta força; faz parte de sua essência enquanto homem: o cinema foi inventado pelo homem, Carlos Reichenbach é um homem, logo Carlos Reichenbach foi inventar cinema. Sua auto-biografia, seu testamento, sua imagem, não poderia ser outra que não um “filme de cinema”, um Filme Demência.
Há diversos filmes por aí, poucos de cinema. Há diversos filmes com grandes atuações, fotografias belíssimas, produções milionárias, temas filosóficos contemporâneos pertinentes, poucos de cinema. Assim como existem vários “filmeclubes” por aí: clubes onde pessoas se reúnem para discutir filmes. “Cineclubes” existem muito poucos. 
Mas onde mora o cinema então, materializado, se não no Filme? Realmente, lá ele pode morar, e é onde mais o encontramos (apesar de existir alhures); assim é com a Literatura no Livro ou a Pintura no Quadro. Mas o Cinema de fato não é tão material assim, ele parte de um impulso, o impulso do homem com a linguagem; e a linguagem do cinema, muitas vezes se esquece, é a da imagem/som; é do impulso audiovisual que a essência dá a luz a potência de matéria, o futuro-filme; quanto à forma, há no cinema uma sintaxe, uma gramática e um vazio chamado possibilidade. Carlos Reichenbach almeja em seus atos-filmes ser o maestro, que conjuga todos os elementos visíveis e invisíveis, com o interesse não tanto de mostrar cada instrumento de sua orquestra (fotografia, cenários, músicas, atores, ideias, imagens), mas, com esse arsenal venusiano, adentrar a música silenciosa, a estrela interna, que entre os planos, entre as harmonias som/imagem, entre a ocupação do espaço de um quadro-movimento e entre as pulsões de um mundo capturado para a ficção de um olhar, brilha como esse algo tão misterioso de nome Cinema, que faz o homem errar na esperança de encontrar no fim uma resposta (a estrada).
Filme Demência encontra a proposta de uma viagem, o próprio reflexo que é livre: a imagem da filha (a inocência que foi perdida em si, renascida no que fecundou). E eis o que é criar, e eis o sonho que é ver o sonho de ver como somos vistos por nós quando adentramos o sonho que é se admirar criando o sonho que é o cinema. Labirinto de várias formas oferecendo viagens, Mefisto Fausto Criança Inferno Espelho Estrada Tempo Destino Vontade somos nós
Filme Demência, o filme mais complicado de ser produzido por Reichenbach, o de maior desespero existencial, o de menor público, é de fato um objeto não-identificado. Inspirado pelo surrealismo mais lúcido, pela pesquisa mais embriagada, pela auto-psicanálise mais hermética, pela vulgaridade mais desnudadora, pela ciência mais oculta, pela viagem mais sem volta.
“Esse filme foi concluído graças à sua necessidade intrínseca de existir”, disse o Carlão. E cada sessão de Filme Demência segue à necessidade intrínseca dele exibir-se. Para utopia caminhamos, na alçada do cosmo, nosso motor é a necessidade. 
MATADOURO propõe o renascimento, contínuo, errante, amante, in-consequente. São estes gases, subterrâneos, mefistofélicos, que desejamos inspirar; depois do véu, até o âmago, pro fundo. Escalemos o mergulho.
Mateos.

sábado, 7 de abril de 2012

Rascunhos de uma pedagogia a partir do cinema (I)

Exercício 1: ver A grande testemunha de Robert Bresson. Virgem, acompanhar todo o seu fluir. Depois ler bastante acerca, tanto descrições do seu enredo, quanto críticas mais profundas. Quando tiver certeza que o filme já foi todo lido pelo seu intelecto, voltar ao filme, revê-lo (aqui você já sabe tudo o que vai acontecer, não haverá mais preocupações em tentar adivinhar o que sucederá), você já pode ver o filme de novo, não precisará tentar enxergá-lo. Aqui não precisa mais ler, pode contemplar. Trocar a pré-ocupação pela ocupação. Agora, o próximo passo é ouvi-lo. Deixar o filme rodar, escutá-lo apenas, de olhos fechados - adentrar seu mundo sonoro. Depois o mesmo apenas às imagens. E por último, revê-lo, som-imagem (quantas vezes quiser – sempre será diferente, e mais profundo).

Exercício 2: aplicar a mesma metodologia à Intriga Internacional de Alfred Hitchcock.


Mateos.

Assim é: como o título

Só mudando o sentido das palavras poderemos entender o real sentido da existência delas. O mesmo a qualquer linguagem que engendramos no contato com as coisas.

Nós (nós) nem precisamos realmente mudar o sentido (com o nosso Poder), apenas Quedar diante das coisas, esperar observar o movimento: as diversas formas que elas tomarão.
Que inenarrável beleza é demorar ante uma imagem: examinar o Tempo.

Sozinhos ademais plenos na noite estrelada teremos sempiternamente ela: a linguagem, como companhia e companheira.

talvez seja um vício talvez virtude

Sei apenas, que nessa relação Um existe dentro do Outro;

há, naturalmente, uma inter-dependência. é o Cosmo (palavra & sentido)

Eu a escuto
Ela me escuta
e quando,
Uníssonos,
cantamos no silêncio,
somos virgem, gêmeos.

Ela diz quando me escuta:
-Não digo nada de novo. Com a experiência percebi que coisas valiosas da humanidade não eram generosamente ouvidas por causa das pedras do pré-conceito e da distração. Com o que aprendi quis convencer, humildignamente, através da beleza cintilantemente ilusória do barril de embriaguez lúcida chamada linguagem, o que todo mundo sabe dentro e o esquecimento velou.

E eu, quando a escuto, discuto:
-Ter um posicionamento crítico verdadeiro não é defender um ponto de vista, mas convidar, humildignamente, o outro a habitar as veredas da materna pensamenta.

Depois transamos, às vezes gozamos ao mesmo tempo às vezes não, mas sempre nos satisfazemos. E depois dormimos. Eu sonho com ela, ela move meu sonho, e nos esquecemos no son(h)o de um agora outro (outrora).

E aí o dia amanhece, e tenho que sair da caverna do ninho nosso amor, porque preciso caçar, ganhar, pagar. Ela fica triste,

Assim é: fa minto

como uma melodia

Mateos

domingo, 4 de março de 2012

Meu herói favorito é Jesus Cristo

"Pai, por que me abandonastes?" (Bíblia Sagrada - Novo Testamento)

O conceito de ‘anti-herói’ é uma falácia, não significa nada. Quanto ao ‘herói’, este nunca foi nada senão um problema (de Édipo a Beatrix Kido). Essa idéia de ‘herói’ como modelo jamais existiu – não nos grandes mitos. Quando nascem os primeiros heróis? Quem são? Aquiles, Ájax, Odisseu? São eles modelos!? São sofredores dilacerados, multifacetados, invejosos, vaidosos, fortes, belos, guerreiros, assassinos, conduzidos pela Paixão e o Destino, mortais, semi-deuses... como pode um ser que na sua própria gênese é algo entre homem e deus ser algo que não a própria contradição? O herói que não sofre e não vivencia em seu périplo ficcional esta dimensão paradoxal entre o divino e o humano, o eterno e o frágil, o sagrado e o abismo, a iluminação e a dúvida não merece ser chamado como tal.

Quando nasce o primeiro ‘anti-herói’? Que diabos significa ser um ‘anti-herói’? Conceitualmente entendemos que é o oposto do herói. Logo, o ‘anti-herói’ só pode ser um modelo (de virtude, bondade, honra, beleza). Ora, pensei que talvez o único ‘anti-herói’ da História da Estória fosse Jesus Cristo. Mas, se assim fosse, que Graça teria?

Mateos.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

pequenas palavras de Grandes lições


Lembro que a primeira vez que me deparei com esse cartaz achei o mais belo que já tinha visto. Algo nessa imagem me emocionou profundamente - sem eu poder explicar o porquê (como uma melodia). Não conhecia o autor, não conhecia o filme.
Ano passado conheci Jean Eustache com "A mamãe e a puta", e cansei de dizer que foi o filme mais belo que assisti em 2011. Há muitos eu emprestei, e muitos não entenderam o porquê de tanta empolgação.
É que Eustache é daqueles revolucionários que sussurram, daqueles vanguardistas que simplesmente filmam como os pioneiros.
A grande lição de Eustache para quem tiver ouvidos para ver e olhos para ouvir é que o cinema não é arte. Categoricamente afirmar isso é um tão pouco que quase nada. O cinema é um desses mistérios que o homem descobriu há mais de um século e que deu à humanidade a oportunidade de repensar os sentidos da visão e da audição, os sentimentos da memória e tudo que advém disso, a relação com o limite e a duração, a fantasia e o sonho, a documentação e a história, a realidade e a gravação (linguagem + ontologia).
A grande lição do cinema não se dá de melhor forma que não nessa oportunidade de ver se desvelar os pontos de vista que a câmera de Jean Eustache ocupa para cada cena, ou de contemplar o momento precioso que nossas retinas aguardam liturgicamente a bênção de cada fade-out.

“Lembro-me de caminhar em Paris, de Montparnasse ao bairro XVIII, de caminhar a pensar, como numa caminhada que trouxesse o tempo de volta. Quando cheguei a casa, a minha avó falou-me durante muito tempo. Tive a impressão de que me falava de coisas importantes. Quando lhe disse: “Mas, escuta, temos de registrar tudo isso”, ela respondeu: “Mas enfim, são coisas que não são bonitas”. “Isso não me interessa”, respondi, “é preciso registrar as coisas, bonitas ou não, elas são importantes, elas são grandes”. Arranjei algum dinheiro para comprar película a preto e branco 16, aluguei duas câmeras, pedi a Théadière que cuidasse delas e a Jean-Pierre Ruh que fizesse o som. E o tempo do filme, foi o tempo da película, as duas câmeras a funcionar alternadas, de seguida, sem corte. O filme era assim a história da película, do início até ao fim. Ao mesmo tempo, como era cineasta de profissão, era um filme de cineasta profissional e um filme de família, um filme amador em 8mm na praia” (Jean Eustache)

Mateos.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Conduzir

“Be a human being, and a real hero” (College)

Os apocalípticos que durmam ou suicidem-se de uma vez, o Cinema respira a plenos pulmões.

E façamos libações aqui apenas à faceta do Cinema Clássico. Do Novo Cinema Clássico: Quentin Tarantino, James Gray, Wes Anderson, Paul Thomas Anderson, Bong Joon Hoo, Greg Mottola... Nicolas Winding Refn, ele também é um cineasta, de gênero (e de estilo). Um dos caras desse universo contemporâneo.

Drive.


No Tarô de Marselha, o Arcano VII (o Carro), é a segunda lâmina onde surge o ser humano enquanto figura, a primeira é o que o antecede, o Arcano VI (o Enamorado). Do I ao V, contando com O Louco (a carta sem número – ou o 0), todos representam em suas figuras arquétipos, seres sobre-humanos. Na sexta carta, pela primeira vez se apresenta um drama: o homem surge, e com ele o conflito, representado pelo signo da decisão, da escolha, a ação do livre-arbítrio que precisa vir a ser a partir do julgamento de um caráter. Nasce o ego, e com ele o humano – no sentido em que mais o conhecemos. E com o homem, o ego e o conflito, nasce o drama.


O Carro é a segunda figura em que o ser humano surge, agora porém não se trata de um ser em conflito. Porta uma coroa que o torna régio (ligado à divindade), um cetro que o torno poderoso (pelo simples signo), e um olhar que revela a sua força serena (a verdadeira). Não é mais o ego (aquele que deve decidir), é o herói (a consciência humana em busca da auto-descoberta). Todos os símbolos contidos no tarô revelam centelhas da humanidade, mas essas duas em especial parecem traduzir todo o estofo de que são formados os mitos antropocêntricos. E, de quebra, são as cartas que, por analogia, interpretam da forma mais pura a beleza deste filme desse diretor dinamarquês.

Títulos, palavras, assim como as elipses e os intervalos, parecem revelar muitas vezes seus sentidos através de veredas suaves. Como o nome do Arcano VII é 'O Carro', o nome do “conto de fadas” de Refn é 'Drive'. Do personagem principal – da lâmina e da película – não nos é revelado o nome próprio. Ficamos com sua imagem, apenas. Não precisamos de mais nada. É que assim como o personagem d’O Carro, o motorista deste filme não quer sussurrar acerca do ego, mas do Eu. Não é um humano, é um mito – já é o Enamorado, agora é também o Condutor (ou o Conduzido pelo Eu?). Faz o que tem que ser feito. É movido pelo sentimento regido pela ética – subsumida a sensação, a emoção, o intelecto, a intuição e a arte. Para conhecê-lo devemos, como espectadores, assistir seus atos. No Cinema assim postulou Hawks, mas existem outras facetas dessa linguagem...

Drive. Uma única palavra simboliza tudo o que este filme representa em sua essência: Que Diretor! O ritmo de suas transições, as respirações de suas cenas de ação (interior ou exterior), a melodia de seus banhos de luz e sombra, a apoteose de suas câmeras lentas, suas sobreposições, seus contracampos guardados no silêncio, sua mise-en-scéne. Sim, de novo, “pôr em cena” – não há como não se inebriar com mortes tão belas: são poemas visuais, descrições dramáticas que atingem o estado pictórico mais sublime!

Do “novo tradicional”, Drive é uma das navalhas mais rigorosa e sensivelmente forjadas, atravessa-nos as veias, causa-nos vertigem, adentram o nosso sangue. Acompanhar esse balé de imagens-movimento reacendeu o meu fascínio por esse cinema que a todos contaminou.

E me deu vontade, mais uma vez (mesmo que distante recentemente desse cinema), de louvar novamente os velhos mestres: Hawks, Ford, Lang, Walsh, Preminger, Hitchcock, e Leone, Melville, Siegel, Hughes, Ferrara. Mas não devo cair no saudosismo, assim como Refn e todo o grupo de cineastas que citei mais acima não cai. Lembrando a célebre sentença de Henri Langlois, “o cinema é um produto comercial e como tal deve ser queimado; mas atenção, queimado pelo fogo interior”. Assim renascem das cinzas todos esses novos mestres. Clint os acompanha. De Michael Mann, Nicolas Wedding Refn é o filho mais singular. E a Juliana Maués tava certa: Drive realmente é um dos grandes filmes de 2011.

Mateos.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

asas aves homens máquinas vôos

Marey - o caçador de almas - com seu rifle
capturava os animais no campo da eternidade.
Embalsamador do intervalo, enquadrava o ladro.
Vampiro amador, colecionador de instantes,
iluminado pelo alvo, mirou o átimo.
Na prata encontrou o vôo, alçou o ouro.
Entre o negativo e o positivo foi o pólo,
magnético ôntico ótico.
Inventou o primeiro cativeiro-paraíso.
Lá, domesticou com cuidado
os primeiros fantasmas.
E alquimizou seus rastros estáticos,
em êxtase.
Ave, às asas Marey
que souberam como ninguém
engaiolar aves.

Mateos.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O que está fora de campo é como o que está dentro de campo. Não 2, nem 1 (nem 3 - imperatriz); é: 0

1º o link:

http://www.youtube.com/watch?v=RIKOBzEuyGY&feature=youtu.be


Só uma coisa supera a realidade: a realidade na eternidade.

Quando não importam mais gramáticas, linguagens, técnicas,

apenas revelações.


Nem um milhão de signos poderiam expressar todo

o campo semântico

da fenda, que o abismo do tempo suga para

um em si.


O extraordinário só pode surgir no ordinário,

no intervalo dos fluxos (também fluxo);

no sagrado do presente.

É só um milagre.


... enteogenia a partir da substância Realidade,

em liturgia deste lírico em máquina colhendo-se o Eu,

Parto

lár

no dia 04/01/2012.


Mateos.


p.s: mais um “texto deixaràstros”, imundo de bruxuleios