segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Travessias 2011

Não é simplesmente porque se utilizam livremente das novas tecnologias para construir linguagem que Film socialisme e Pacific são os dois grandes filmes do ano, mas porque nos atualizam imagens da percepção.

Tudo parte da ética. O filme do francês manda pro caralho os direitos autorais e qualquer idéia capitalista de propriedade intelectual de qualquer imagem. O filme do brasileiro pro caralho o roteiro e a direção (apesar dele parecer não se dar conta disso nos créditos). O primeiro, de tão consciente em suas operações, parece atingir o inconsciente coletivo, e o segundo, partindo do inconsciente coletivo (e subconsciente individual), parece nos levar à consciência de compreensão dos engodos (alienantes e/ou maravilhosos) de uma era.

Film Socialisme é extremamente filosófico, filológico, arqueológico, é estudo ontológico de um pesquisador-artista, sobre o cinema em si e sobre a civilização (que produz Imagens – memória – História - segredo). É criação total em todas as fases do processo: do planejamento à adição de imagens de outrem, da gravação à criação de sentidos a partir da montagem. É alquimia constante numa busca incessante, de novo [Godard] ao novo, ao único; de novo extraindo de si (e do ato de produzir imagens) tudo o que se pode extrair (de reflexões, emoções, experimentações, errâncias). Jean-Luc Godard é = a autor audiovisual. Defendeu tal premissa quando crítico e praticou quando cineasta – mais que ninguém. Mas não só de autores vive o audiovisual – e o mesmo sabe disso mais que ninguém -; o audiovisual vive apenas de imagens em movimento. À câmera a cultura é indiferente.

Filmes capitalismos. Os dois estão a bordo, tematizam a Viagem, de como ela transparece uma civilização (da informação, da indústria cultural, do entretenimento, das mídias sociais, da dispersão, do capital). Mas sobre o que versam em essência os narradores dessas Odisséias? Qual vossa Moby Dick? Talvez tudo remonte aos soviéticos: àquele Encouraçado. Eisenstein, Vertov, Kuleshov: o cinema é montagem?

Pacific, enquanto obra, inicia de fato o seu trabalho apenas nessa fase última do que se costuma enxergar de processo cinecriativo. Há na verdade, antes de tudo, uma idéia que impulsiona tudo (o projeto): pedir para os passageiros daquele cruzeiro para Fernando de Noronha, as suas gravações pessoais para a construção de um “documentário” [sic]... a brincadeira mesmo, entretanto, começa na Montagem.

O que é o “diretor”? Se é aquele que limita, que faz escolhas, que represa para que a obra siga o curso que ele acha mais conveniente, pode até ser que Marcelo Pedroso seja o DIRETOR de Pacific, afinal ele fez a escolha de pedir as imagens depois que elas já tivessem feitas, com claras intenções de direcionar o filme para uma estética onde contemplamos uma cinegrafia intuitiva livre de diversas personalidades (crianças, idosos, casados, solteirões) que hoje tem em sua mão – de todos os modelos – essa máquina que grafa o movimento da realidade em um suporte. Entretanto lastimo a chance que o Marcelo, ao creditar-se como "diretor, roteirista e montador", perdeu de dar o valor real para um certo estado de criação amiúde negligenciado... ao meu ver o Marcelo é mesmo o MONTADOR – e isso é tudo! Concordo que se Pacific tem um AUTOR é Marcelo Pedroso, mas o âmago de sua forma provém justamente do fato de prescindir de DIREÇÃO pra existir. “Documentário” também não me agrada... esses termos todos parecem estar caducos demais (há muito tempo)! Foi pela falta de DIREÇÃO e por não ser um DOCUMENTÁRIO que pudemos entrar em contato com um momento cinematográfico tão fascinante na construção de um personagem para câmera como faz o pernambucano fanfarrão, ou um momento de realidade tão fresco quanto a briga das crianças na areia, com o lorinho zombetando sua irmã e o pai a se divertir na câmera, ou a criança “marmotando” com o zoom os pés do vovô, ou ainda a cinegrafia subjetiva do casal apaixonado, exalando amor em cada movimento de câmera ou naqueles planos tão longos onde não se cansam de filmar um o corpo do outro e às vezes pousam a câmera para beijar-se.

É fato, ademais, que um certo olhar deslocou todas essas imagens de seu contexto ordinário e as sistematizou ao seu gosto. E certamente, sem essa intervenção, elas não ganhariam tal estatura significativa (que mais que revelar coisas novas revelam as próprias coisas-imagens). Enfim, tudo apenas milagre da justa-posicação [lembro aqui o "mot juste" Flaubert]. MONTAGEM – não meramente no sentido dos livros didáticos de linguagem cinematográfica, mas no sentido último que Eisenstein desencavou; no sentido mesmo de uma forma como o pensamento age.

Marcelo Pedroso agiu, neste fenômeno cinematográfico, muito mais como agiria o arquétipo do Montador; e provou, que para o cinema existir (mesmo enquanto “obra de arte”), não necessita do Diretor. Que o Embusteiro, necessariamente, não precisa errar pelas estradas para encontrar a criação, mas tão-somente atuar em seu escuro laboratório, decantando em ouro os metais do dia-a-dia.

Existem vários tipos de cinema. O que ficou mais canônico em termos de crítica, glorifica o “auteur” como responsável real do filme e o plano como unidade mínima (logo máxima) da linguagem cinematográfica. Além do “cinema do plano”, há ainda o “cinema do fotograma”, o “cinema da imagem”...

Quem é o responsável essencial de Pacific? Assim como em Film Socialism: a Humanidade – que produz imagens. É essa a luz que encanta as duas personalidades, cada uma ao seu modo;

é ela

que

bruxuleia inconstante, engendra mirações,

segreda mistérios, floreia emoções,

revela vulgaridades,

realidades,

idades,

eternidades,

limites.

E o Cinema é esse monstro maravilhoso que engole todos os saberes e a própria realidade e reflete em luz a projeção de Um inefável.

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Novas formas, enquanto espectador, de vivenciar uma experiência cinematográfica. É à estas obras, hoje, que cito a minha admiração nestes quaisquer textos e rankings, que sugerem, apenas, ao outro que compartilha atenção, um olhar a mais. Em 2011 foram, além destes dois, Cópia Fiel do Kiarostami, Tio Boonmee do Apichatpong, Árvore da vida de Malick, A fuga da mulher-gorila de Felipe Bragança & Marina Meliande e Os monstros dos Irmãos Pretti & Primos Parente.

p.s: se esses textos que balbucio parecem um pouco distantes das maravilhosas convenções de coesão límpida + metáforas claras + argumentação silogística + afirmações categóricas, admito que é por falha minha. É que in-voluí: deixei a volição de espetáculo pra ensaiar somente. Do jogo é buscado um pouco além do elo com o devir; e dessa escassez fagulhas (à prova de pedra). A obscuridade significativa à clareza explicativa. É questão de búfalos à noite, em lugar de touros pelo chifre. Da respiração tem vários exercícios...

Mateos.

Um texto como sinto a forma de Totoro

A arte (da animação) de Haio Miyazaki é a prova universal irrefutável de que o espírito é mais essencial que o corpo, de que a beleza numa figura animal (motor + instinto / inclui-se o humano) provém principalmente de seu movimento (Graça) e de que a criação é o caminho mais óbvio ao primeiro.

Criar o novo é um pleonasmo retórico que Haio Myiazaki serenamente desdenha, o Animador reconhece que a eternidade se encontra precisamente quando se cria o antigo. Não obstante, do incidente da personalidade, naturalmente refratam-se formas únicas. Nelas há, ordinariamente, a expressão. Essa expressão, para este artista, é o resultado de uma brincadeira que ele pinta com acuidade perfeccionista. No seu embornal de cores todo o espectro cósmico ulterior: Vontade, Amor, Necessidade, Liberdade, Sonho, Inteligência, Justiça, Cultura, Natureza... ele parece ser um dos poucos que realmente enxergam/traduzem fagulhas do Mundo (a totalidade das coisas). Suas obras parecem sempre conduzir-nos, como num sonho alquímico, a esse incêndio chamado Imaginação.

A poesia, ou a construção-livre, se dá sem dúvida não no âmbito do completo ineditismo. Fabricar esse algo é simplesmente estabelecer novas relações a partir do existente. Essa relação entre Ponyo e Sosuke, por exemplo, não existe; ela é. Compreendemo-la porque somos humanos, e não porque assistimos à vida tão-somente. Poderíamos chamar de Amor, outros de Amizade, outros ainda de Paixão... são nomes... Passion, Friendship, Amore... admiramos um único fenômeno, rizomático por excelência.

E dessa forma Miyazaki vai revelando formas, traçando o universo...

Mateos.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Ordem e Progresso

Ontem, em reverência ao maravilhoso trabalho da fotógrafa Nan Goldin, postei essa foto (abaixo) no facebook. Minha conta foi desativada. A última Mostra dela foi censurada. Segue em baixo a carta de repúdio de Ligia Canongia.

“Em reunião ontem, no Oi Futuro, fui comunicada pelo curador e pela direção do instituto que a exposição de Nan Goldin estava suspensa.

Em ato arbitrário, prepotente e desrespeitoso com a artista, os curadores, e sobretudo, com a obra de arte, a mostra foi CENSURADA.

A artista chegaria ao Rio dentro de 20 dias, e a exposição se inauguraria em 09 de janeiro, ou seja, faltando praticamente 1 mês.

A direção e a curadoria dessa casa simplesmente não sabiam quem era Nan Goldin e o conteudo de suas imagens, tomando conhecimento delas apenas no final de outubro, embora tenham selecionado a exposição em edital de um ano atras.

Um trabalho de quase dois anos foi jogado fora, sumariamente.

Atos como este só se inscreveram na historia durante o nazismo, o fascismo e as ditaduras.

A instituição teve apenas o desplante de me pedir que levasse a exposição para outro lugar.

Se vocês puderem e quiserem se manifestar a esse respeito, eu agradeceria, pois vou reencaminhar ao Oi Futuro a ressonância dessa arbitrariedade no meio artistico.

Um grande abraço,
Ligia Canongia”

Mateos.

sábado, 12 de novembro de 2011

Finalidade sem fim

No (PRIMEIRO) rabisquei 4 notinhas, e refleti um tanto de questões. Escrevi esse texto faz tempo, ia ser publicado em jornal. Foi cancelado. Tava engavetado. Desengaveto:
Foi interessante rever (ao acaso), no meio do processo, o primeiro filme (D.JUAN). Mais ao acaso foi a situação: convidado por Marcio Barradas a exibí-lo junto com a estréia de seu novo filme em Mosqueiro (OS COMPARSAS), exibiu-se também outro filme seu (CORAÇÃO ROXO). Compreendi que este último, diferente do seu último filme, era por excelência "conotativo", enquanto o outro era "denotativo" por excelência. Fazendo essa justa diferença compreendi que o D.JUAN, assim como o PRIMEIRO, são filmes "conotativos" sim, assim são. Compreendi que os fiz na verdade com uma simples preocupação: porque neles expresso tudo aquilo que não conseguiria expressar através das palavras.
"O inominável pode ter imagem". Esta foi a primeira notinha que rabisquei durante o processo.
Revendo o D.JUAN admito que não consigo fazer julgamento qualquer que seja. Encaro mesmo como um complexo ato moral (aqueles que não são certos ou errados, mas que machucam e libertam). Sinto como espectador, o filme que em alquimia materializei, de forma estrangeira familiar. Reconheço-o talvez como um pai reconhece o filho, tão parecido e tão livre. Ou reconheço-o talvez como um filho reconhece o pai, tão perto e tão distante.
"Oh que grande erro da hermenêutica fílmica: não é o autor que se diz no filme, é o filme que se diz no autor". Na montagem conclui acerca desta idéia, que já me assaltava em outros processos.
Quem ou o que sou já não sei, o filme se encontrou no momento em que eu me perdi.
 Não sei nem se ainda consigo escrever sem parecer que estou montando fragmentos (no caso parágrafos) e que o que tento dizer não está nesses blocos de letras (ou de som/imagem movimento), mas nestes intervalos, nesses silêncios pescantes, nesses vazios eternos. Os sentimentos de terminar um filme são estranhos (como os momentos mais complicados de ódio/amor); tenho o sentimento profundo do alívio de que daquilo vou me livrar, tenho também o sentimento profundo do alívio de me livrar do fazer cinema, e tenho ademais o sentimento profundo do alívio de que terminei aquilo e já posso começar um outro. São estranhos esses sentimentos pois parecem o mesmo, mas não são; ou, ao contrário, parecem diferentes mas são o mesmo.
"Fazer cinema é a luta do homem contra o mundo e a máquina". Esta a terceira notinha, talvez a mais óbvia e a mais fecunda.
Não há fuga: para se fazer cinema se precisa da máquina e do mundo! Para o filme existir além de ser, é preciso a ação humana no mundo exterior; o contato com as coisas e as pessoas, e as máquinas e os poderes. Pode até ser prazeroso, tal qual o sentimento da baioneta atravessando a costela do inimigo, mas de fato é perigoso. Fazer cinema é uma luta!
Contra o mundo existe o jogo social, e existe o jogo natural. Movem-se as peças estratégicas de produção (por mínimas que sejam), e movem-se as peças estratégicas de criação (percebendo como em comunhão com o mundo pode surgir não aquilo que foi imaginado, mas o que é possível - e que partiu daquilo imaginado, mas que agora encontra o caos).
Contra a máquina existe o jogo da tecnologia, e existe o jogo das enfermidades. Para criar algo de forma humildigna no cinema não é possível choramingar a falta de qualidade tecnológica ou o subdesenvolvimento técnico, é preciso afirmá-lo esteticamente. Este é um jogo que se compreendido tem a transparência das cartas na mesa, pelo menos do homem com a máquina e a obra que surgirá desse embate com o mundo (com o público já é outra história). O jogo das enfermidades já é mais complicado, e opera em campos delicados para o homem como a impotência e a imprevisibilidade. O mundo digital, no qual nós (cineastas independentes) operamos hoje, tanto nos liberta quanto nos naufraga. As pequenas enfermidades dos arquivos – que sofrem conversões daqui pra lá e são malhados entre o 0 e 1 – acabam sempre ocorrendo, e o produto final deve, para não se frustrar, ao invés de repudiar, aceitar talvez. O cinema (não só o digital) é a arte por excelência da “imperfeição”, só assim ele pode atingir a realidade além do mundo.
"Entre os olhos, a imaginação". A última nota rabiscada, acho que a única digna de um status aforismático; pela síntese de idéias que ela encerra e a dimensão semântica que ela convida. ‘Entre’ remete àquilo que está "entre algo e algo" (no caso os olhos), e ao verbo "entrar". Os olhos remetem à visão assim como ao olhar (reflexo da alma). A imaginação (imagem em ação) é o próprio cinema, assim como o sonho e o mundo.
O Fim.
Mateos.

domingo, 6 de novembro de 2011

O cinema é sexualmente transmissível


Lógico que o filme não é sobre as injustiças sociais, ou sobre a Amazônia, ou etc, a única região eternizada em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é a do corpo, os desbravadores Beto Brant e Renato Ciasca sonham nele grilar a alma.

Marçal Aquino escreve, habita por excelência o campo da ficção. Se fala de Pará, São Paulo ou Porto Alegre, é através da língua escrita. Não registra (como o cinema) os fluxos desses exteriores, grafa os sentidos e paisagens nos interiores das palavras. Não é 'registro' – por excelência. Nenhum deles aliás - Marçal (escritor), Beto & Ciasca (cineastas) ou Cecim (alquimista) - desejam o registro objetivo; não desejam o mundo tal qual, mas o mundo in-possível > a partir da linguagem, vindo da vida < mas para chegar à ela novamente, por outra instância, sobretudo nela porém – por excelência no cinema.


A visão dos cineastas, tal qual a do protagonista Cauby, é a do forasteiro que está bem distante da militância política, é muito mais o artista visual e o errante curioso. Interessam-lhe as cores, os ângulos, as mulheres, as imagens, as revelações; a questão política no meio, ou atrás (background). Cenário sensorial. Se filmar em
um lugar, não se deve negar a vida que pulsa neste habitat, as pessoas que agem nesta cultura, as religiões que se manifestam, os movimentos sociais que se dinamitam, mas tratá-los, ademais, exatamente como os pássaros que ali gorjeiam, a umidade que faz os corpos brilharem, a luminosidade que dá certa cor particular às coisas, os sabores do ar, os dissabores dos conflitos traduzidos em olhares, gestos, rugas, semblantes, enfim, tratá-lo, nas palavras de Beto Brant, pelo menos, como “cenário sensorial”. O interior do Pará é este cenário no filme, o seu background, o que está em campo em profundidade. Como o caso é cinema – não literatura – o cineasta não descreve uma paisagem que inventa em símbolos, mas captura o imanente que pulsa em movimento.

Não podemos cobrar consciência política de um cineasta que se enxerga ele próprio co
mo o “forasteiro ingênuo”, assim como não podemos cobrá-lo do personagem principal, que assim também o é. Nesse mesmo dilema, porém, os próprios autores entram às vezes, e o filme exibe a sua fragilidade numa esfera de posicionamento político.

Mas a esfera central é outra...

Cauby quer o corpo, Ernani a alma. A nudez é o signo mais nu da Pureza: na nudez da alma encontramos a Verdade, na nudez do corpo a Beleza. A Comunhão, sentido talvez de toda a existência, se dá mais plenamente no sexo, e a morte em vida (o Orgasmo) se dá no Movimento, e no encontro de corpos. É possível uma máquina cinegráfica embalsamar o Amor em Ação? É possível promover essa sensação (estética por excelência) do público vivenciar o Estado da Paixão no Centro do Instinto? É possível capturar a Duração da Entrega? A resposta é: que é possível a Imagem disso tudo.

Fotografia. Cauby – se alguma coisa pode se afirmar sobre ele – é que ele é um fotógr
afo. E, se podemos especificar: um apaixonado por fotografar o Corpo (feminino). Só uma vez se fotografa a Alma durante o filme – a imagem fica no silêncio, significa-se em elipse; é quando Ela o fotografa na orla de Santarém. Só uma vez, entretanto, se Cinegrafa a alma – temos que esperar até o último plano. Ela.

É um cântico poderoso, sobre a tentativa pelo Homem de resgate da Pureza, reconhecida na Beleza de um corpo de Mulher (quando falo "corpo de mulher" não falo seios, bunda e buceta, falo olhos, pele, si
nais, sovaco, barriga, virilha, braços, pêlos, púbis, seios, bunda e buceta, mas sobretudo movimento, ou resumindo em uma palavra, Graça). O Homem é representado por Cauby, Ernani, e até pelo jornalista, a Mulher por Lavínia, ou Lúcia, ou uma prostituta jogada na calçada.

Não existem “piores notícias de lindos lábios” de ninguém, o nome do filme é péssimo (diferente do nome do livro, que é ótimo na unidade da obra de Marçal). Talvez “Eu só poderia receber qualquer fagulha de alma do seu milagroso corpo em movimento”, ou algo que o valha fosse mais fiel à essência que se busca.


Este texto não é sobre Camila Pitanga, é sobre o seu corpo cinegrafado. O corpo não tem nome, nomes são símbolos, símbolos são da esfera intelectual, da alçada da mente. O corpo é da esfera motora, da alçada do instin
to. Por qual delas atingir a alma?
A metodologia de filmagem de apreensão disso tudo foi o cinegrafista solto entre os pontos demarcados grafando o movimento da ação desses corpos em atrito, entre intervalo, sob a gravidade das induções. A metodologia de montagem já outro passo, de construção do olhar, de edificação dos sentidos finais de um discurso estético num enredo dramático.
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Citei Cecim lá em cima porque é o livro que o jornalista deixa com dedicatória pro Cauby: Viagem a Andara, O Livro Invisível. Lembrei dele falando que os críticos ficavam doidos com ele quando o mesmo escrevia críticas porque ele fazia reflexões gigantescas sobre cinema em filmes que não valiam nada, e que ele mesmo admitia. Mas o que não admitia era perder 1 hora e meia vendo um filme ruim, que mesmo durante a sessão ele começava a brincar com a película, construir novos significados, inventar novos enredos, novas relações entre os personagens. Não quero dizer que este filme do qual falo é ruim, muito pelo contrário, é um grande filme!, mas percebi no fim do texto que cada dia me aproximo mais do ensaio que da crítica. O filme e a vida sendo pontos de partida para reflexão de processos em andamento e não mais objetos de análise.
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Contrariando porém, queria analisar a cena que considero a mais bela do filme. Aquela em que esse steady cam flutuante em plano longo enfim ganha seu contorno dramático enquanto elemento estrutural essencial de uma unidade.

Nada mais, nada menos que o Clímax! O encontro dos três. Quando Cauby pressente a presença de Lavínia no portão de sua casa (o mesmo pressentimento – antes com sorriso no rosto – quando da apresentação dessa personagem), e vai resgatá-la. Todo o movimento simbólico eterno do acolhimento ao lar, e então o momento (Blow Up por excelência) do artista louco pela arte da fotografia que, acima de qualquer moral, quer um retrato daquele momento que se intensificará e abrirá um abismo ainda maior - agora moral - com a notícia de um filho (talvez aí a notícia dos lindos lábios faça realmente algum sentido!)... e então a chegada de Ernani e o outro resgate, agora numa Pietá masculina, com direito a olhar sem contracampo para Cauby.


Depois aquela elipse maravilhosa!

Continua... (?)

Mateos.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Carta para o subjeto côncavo e objeto para a convexa Gi

Nunca sei como as coisas se casam porque não é minha pretensão ser ciente dos mistérios do acaso. Jogo ilações no ar como qualquer tagarela, então: lembro quando perguntaram pro Einstein quanto tempo ele acha que demoraria pra falarem dessa tal “lei da relatividade” se ele não a tivesse exposto e ele respondeu que em uma semana no máximo. O fato que deduzo daí é que o que está no ar todos meio que acabam respirando (quem tem pulmões).

Quando Gi veio falar de “cartografia crítica da Amazônia”, e eu vim entender, de fato, o que isso realmente significava em sua essência, percebi, de cara, que era, na verdade, o princípio artístico dos que produzem comigo ao meu redor e eu mesmo sem eles e eles mesmos antes de me conhecer. Mas que, ademais, juntos tínhamos projetos já materializados em coisas (que eram – também – isso mesmo).

[Aviso que esse relato é pessoal, mesmo que resvalar no quoletivo – o que é natural, & é no ritmo da fala mais que da revisão,]

Eu, desde 2009 vinha me expressando audiovisualmente. Meu primeiro filme (D.Juan) não tinha nada das reconhecidas cores da terra. Isso não foi uma cartilha contra ou etc, e é o que digo sempre disse: foi só um filme, e este queria ser do jeito que foi. O segundo (PRIMEIRO), que também é ficção, é uma aberração nesse sentido também porque é tentativa de um filme medieval em sua imagística, inspirado pelo cinema silencioso mais hermético e homenagem ao cinema paraense que ninguém conhece. Enfim, além dessas ficções me interessava muito experimentar um “cinema da realidade”, um “cinema de rua”. Algo que bebia no Vertov, no Cinema Direto, no Glauber de Câncer e Idade da Terra, no Sem essa, Aranha do Sganzerla, mas principalmente nos limites da minha câmera Sony Mini-dv DCR-HC52.... E no PLANO... não no “plano-sequência” clássico, mas voltar ao ‘plano até a bobina acabar’ (aqui a fita mini-dv)... esquecer a idéia de sequência como capítulo e o corte como ponto-capítulo... esquecer também o roteiro, a cinematografia, a “partitura-storyboard”... voltar à cinegrafia (agora com uma hand cam, e onde ela pode ir)... trabalhar o TEMA... como no primeiro cinema (“A chegada do trem”, “Anabelle Butterfly dance”, etc)... desembocar assim no jazz, no free.... por isso JAMCINE... eu com um instrumento (a câmera), o outro com o seu (o corpo), e o mundo (Belém) pra jogar... o improviso como elo, como base poderosa, engendrando a ficção (‘fictio’ = construir), a partir de todas as subjetividades que podem habitar esse quadro vivo-eterno. Não “capturar a vida de improviso” como Vertov intentava, não mais; agora em outros termos, outros passos: eternizar a vida em estado de improvisação.

É sempre sobre o presente, e sobre eternidade. Sobre o físico e o invisível. Há escolhas de posicionamento de câmera que desvendam significados de olhos e pedras, de gestos e cores, não há nada gratuito mas tudo cheia de graça. Não sobre a realidade, mas nela. Habitar a invenção, e nela passar/pulsar toda uma cidade viva. É um cinema de rua, de ruído, não há uma só pós-produção, senão no corte do início e do fim e na montagem das 7 imagens-movimento, é busca de uma “cine-graphia”, uma “dramaturgia do/no caos”, “descoberta da vida/arte no processo-estado”, “enfrentamento criativo” com os espaços e toda memória de afetos que temos com eles e que construímos no momento e/ou quando revisitamos em outro vídeo o mesmo espaço ou os mesmos corpos-personagens.

Falo muito do jogo do lado de cá – do da câmera – porque, como já disse, é relato pessoal de um processo (que resvala naturalmente em quoletivo). O produto obviamente é quoletivo, qualquer. Criação em ação de fato nessa levada a sério da brincadeira de criança nessas coisas sem futuro. E aqui sem dinheiro, nada custou um puto, e esse cinema só teria dado certo assim. Não é uma ode ao cinema pobre, mas esse precisa da pobreza pra existir. Liberdade é limite e o desse era: não temos dinheiro, não temos tempo, não temos outro equipamento: tiramos uma hora, Belém, nossas roupas e nossos corpos, e esse equipamento em seu limite. (aliás que saudade dessa câmera, ela a única que quebrou meu ceticismo me enxurrando de milagres!)

O que temos é um condomínio audiovisual que pode ser remodelado a qualquer momento, é um organismo vivo. Tem um edifício concreto, que tem 7 vídeos separados apenas por cartelas de apresentação com o título, o número e o sub-título. E que, apesar de uma montagem mínima, esconde segredos que o hermeneuta mais vacinado guardará espantos. Este um dia se sonhou chamar “2011: Uma Odisséia neo-ultra-sur-realista na Amazônia”, mas que no fim ficou JAMCINE (até na marquise do Olympia), onde foi exibido desta forma. É um filme de mais de 5 horas, que na verdade foi dividido quando lá exibido. (Também todos os outros, em separado, já foram exibidos, em lugares não-reconhecíveis como tradicionais pontos de exibição – desde a pça da república, uma loja de eletrônica, uma van, até uma casa de família, um penetrável do Hélio, uma festa). Tem um outro edifício, é orgânico: banco de dados para videotecagens: para descoberta de relações entre os 7 na “montagem free”. Vários outros edifícios são possíveis de serem propostos, até para os que nunca participaram do processo > os direitos autorais estão dilacerados.

Escrever/teorizar na convencional língua escrita sobre o que se pena subjetivaobjetivamente pra fazer e ainda publicar já é chato demais ao meu ver, mas o vídeo da Gi tremendo de frio editando um suspiro pra construir ainda uma cartografia crítica da Amazônia (sempre) me deu vontade de me perder nesse esquizo escrito meio carta que envio para o rastro e aquém. E lá pra ti: Gi.

Acho que pra arqueologia do pó essa grafia já serve. Pra mim. Exposto. E aí posto... existo?

Sabendo-se: Os verdadeiros lugares não figuram nos mapas. Eles só existem quando realmente fuzilamos com olhares, nossos. hAs paisagens. O resto são rastros do outro, o que pra arqueologia serve, para o logos também.... para a arché ? (Ainda assim importantes,)


Mateos.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Primeira

A cinegrafia – arte de se expressar c/ imagens em movimento – é ostracizada, amiúde, na cultura audiovisual; o contato do Câmera c/ a cÂmera, a vossa resposta direta-imediata olhohumano-olhomáquina c/ o mundo>imagem é normalmente, meramente, mecanicista-tecnicista, quase sempre subjugado à pré-cinelinguística – o instrumentista regido pela batuta da partitura cinegramatical.

A cinegrafia livre, solta no compasso da improvisação se cinescreve na batida de um coração-olho que trabalha c/ as mãos: foco, exposição, zoom, movimentos, angulações: o espaço descobrindo-se-criando-se nesta/nessa dimensão>audiovisual.

O momento-ato cinematográfico por excelência, acredito neste momento, que seja exatamente vivenciando esta catarse-criativa onde, acionado um dispositivo, o corpo a câmera o mundo se perdem nesse baile cósmico transdimensional. Onde não existe estética, filosofia, lógica, método, mas a pura ontologia cinegráfica em desejo: ou seja, a ativação por um corpo>c/>máquina de um espaço-tempo onde toda a complexidade do mundo e da realidade em presente fluindo se transborda neste incomensurável (pois limitado) portal constituído sobretudo de luz. e movimento

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Berlém

Foi um dia desses que eu assisti pela primeira vez a obra-prima do Walter Ruttmann, Berlim - Sinfonia de uma metrópole.Cada vídeo-postal que eu e-recebo do Ícaro Gaya lá da Alemanha sinto, pelo lado emocional, a saudade de um grande companheiro, e pelo lado estético, um prazer inenarrável.
Recentemente, juntos, vivemos esta dimensão suspensa pela eternidade detonada pelo REC, e, nestes momentos, acredito, foi quando dialogamos da forma mais pura e sincera.
Vendo o filme do Ruttmann só lembrava do Gaya. De Berlim.
O Ruttmann faz uma sinfonia, uma sinfonia grandiloquente e exasperada de uma metrópole em ritmo industrial. O Gaya é um estrangeiro, e um poeta que descobriu cedo a dimensão do corpo. E recentemente a do quadro. Expressivo ao extremo, como o Ruttman, ele compõe uma série de sequências, que encerram temas (etéreos que sejam). Diferente do velho, o novo, porém, suspende um plano, habita-o, com corpo e/ou sombra, com olho e/ou olhar. Diferente do antigo, este não deseja, através da montagem, o ritmo frenético - este não compõe uma sinfonia; este mais cantarola elegias, apreende estruturas nas formas, comunga com luzes nos crepúsculos, se delicia foneticamente com fragâncias de sons exóticos, dialoga em monólogo com as pedras, trens, parques e túmulos.
"Enfrentamento criativo", aqui (lá) cálido, tenro, cotidiano, grandioso.
Vendo os filmes do Gaya só lembrava de Belém.

http://www.youtube.com/user/3luavermelha

Mateos.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Inelutável ficção

King Hu é um dos maiores amantes da "realidade da ficção" em prol do "realismo ficcional". Chamar de "artificialismo" este nobre caráter de estilo talvez seja pouco para conceituar o que constitui a grande lição desse mestre chinês. Chamemos de "cinema auto-consciente", cinema que se coloca enquanto cinema, que se mostra opaco, que se apresenta livre em sua litúrgica coreografia.

Não interessa para este cineasta, às vezes, a continuidade clássica, a montagem invisível, os "vrai raccords". Cada dardo arremessado, cada espada empunhada, cada golpe desferido, cada olhar de amor de submissão ou de medo, cada gesto marcado na geografia de cada espaço, cada ato captado respeita apenas uma regra: a beleza do movimento inventado. Beleza que se apresenta grandiosa na duração do plano, e ainda mais na justaposição com o próximo. O que Hu opera é um verdadeiro balé de imagens sobrepostas. O cinema em ação. O cinema são de sua natureza. O cinema vivo em sua evidência (de mostrar realidades, e de criar universos). Filho direto da Ópera de Pequim, ama o espetáculo, que revela toda a humanidade chinesa.

A estalagem - como o "sallon" no western - é o microcosmo desta sociedade. Hu esquadrinha as classes sociais (que ali se encontram e se defrontam) e a geografia desse espaço, onde olhares são comungados, provas de artes marciais exibidos e homens friamente assassinados.

Entre eunucos e guerreiros porém é a guerreira a personagem mais característica de Hu. Personagem imageticamente imortalizada pela bela Cheng Pei Pei. Ela se veste como homem, é honrada, forte, firme, inteligente, ágil e linda.

No bairrismo cinefílico há os que amam mais o Hu e os que amam mais o Cheh. É como Hawks e Ford na América. Não me peça pra me posicionar...
Hong Kong, inelutavelmente, produz gênios. Aos guerreiros é sempre importante enfrentá-la.
Lá mora o cinema - esse campo de batalha.

Mateos.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Evoé John Cassavetes

embriaguez

O que esperar de um alcoólatra? Frases mal pronunciadas, desejos obscuros escancarados, gestos aparentemente impossíveis ensaiados, erros (errâncias?).

A loucura, como o crime, a droga, a misoginia são fenômenos por vezes amiúde fetichizados, por vezes amiúde moralizados. Álcool. Fiquemos com o ethos de quem compartilha deste vício, com o pathos de quem alimenta essa virtude. Os efeitos deste líquido milenar construíram a História da Humanidade, destruíram Civilizações. Paliativo oficial do homem em todas as culturas ao redor do mundo, o álcool é a válvula de escape mais rudimentar e nobre ao lado da contemplação artística - ambas nos iludem do mundo externo, nos iluminam o mundo interno; ambas nos revelam, nos consomem.

Onde nasceu a embriaguez, quando ela se impôs como regra cultural em todo o mundo? São perguntas que eu não saberia responder... A conclusão é apenas que o álcool é um dos assuntos humanos mais importantes, tratado nesta obra não por quem o domina, mas mais propriamente por quem é dominado por ele.

John Cassavetes viveu, amou e filmou sob o signo da embriaguez, para atingir as trevas do ser, os traumas das relações e os fluxos dos corpos. Sua câmera, no momento errado (errante?) se colocou no fundo dos olhos desesperados dos que fogem de sua psiquê. Contemplamos faces. Entre a histeria e seus barbitúricos se vive esse balé trágico nesta selva escura. Entre a solidão e a relação com o próximo se constroem essas quimeras: casamentos, filhos, amantes, amor. Entre o complicado homem John Cassavetes e a não menos complicada sociedade americana surgiu este vômito bêbado, sincero e catastrófico, digno de revolta e de pena, fascinante e indigesto. Nasceram obras à eternidade.

utopia

Os maniqueísmos melodramáticas não são do feitio de John Cassavetes, que filma os dramas que o rodeiam, e muitas vezes com quem o rodeia. Ator antes de ser cineasta, Cassavetes, diferente dos jovens do Cinema Novo brasileiro ou da Nouvelle Vague francesa, trilhou, através principalmente da intuição, do amor à utopia, da amizade e do prazer no ato de criar, um caminho solitário nos EUA. "Cineasta independente" por excelência, Cassavetes e sua equipe decidiram aprender fazendo, ao largo da indústria. O "cinema americano" tal como é conhecido no mundo faz referência à "Hollywood", o "cinema industrial" por excelência, o cinema "hegemônico", "convencional", "do entretenimento", etc... É pouco conhecido porém o "cinema experimental americano", que notavelmente ocupa o posto de "mais experimental", e que tem nomes tão fortes quanto Michael Snow, Kenneth Anger, Maya Deren, Stan Brakhage, Andy Warhol, entre outros.

John Cassavetes nunca se interessou pelas reduções ao tratar dos conflitos humanos; é preciso tratar a América igualmente! O herói cassavetiano nunca seria reduzido a um estereótipo, menos ainda a heroína. Isso porque Cassavetes se interessa mais pela vida que pelos contos de fadas. Esse conto de fadas de que "o cinema americano é do mal" poderia até nos proporcionar um prazer estético se bem contado, mas se falamos historicamente, vamos acordar e analisar o que realmente importa.

Nunca tive um espanto maior em relação a uma imagem-face precocemente envelhecida como a de Cassavetes antes e depois do seu terceiro longa-metragem, Faces (1968). Foi o seu “filme dos cabelos brancos”, John tinha então 39 anos. Só de imaginar a dificuldade em terminar este projeto (em toda a sua amplitude) dentro das condições que possuía só posso me admirar e me emocionar. Quixotesco por excelência, o gesto deste homem inspirou cineastas independentes ao redor do mundo, homens que pertencem à mesma terra natal que ele: o Cinema.

improviso

Todo filme narrativo que se utiliza de atores para encenar egos experimentais em conflitos cênicos num tempo presente constitui-se indubitavelmente numa arte dramática. Ocorre neste caso um teatro, encenado para apenas um olho: o da eternidade. Quem compõe o drama é denominado dramaturgo, quem dirige a cena o "metteur-en-scéne". Cassavetes ocupava as duas funções, o que não quer dizer que os atores eram rigidamente controlados o tempo todo. Pelo contrário! Vindo da arte do ator, e extremamente ligado espiritualmente à liberdade jazzística de uma jam session, o cineasta americano julgava mais interessante para o seu projeto de filmar pela objetiva a alma através das relações subjetividades do corpo, um espaço para a ‘improvisação’ - que não passa de um estilo de interpretação. Um grupo de atores intima e artisticamente ligados, vivendo o teatro como vida e a vida como teatro, se constitui numa potencial "banda cênica", prontos, quando solicitados, para uma jam com seus instrumentos afinados e insuflados de inspiração e experiência. Por vezes a "improvisação" é tida como sinal de um "rigor frouxo" ou "um lance de dados". Se configurando porém como parte essencial do processo criativo de artistas como Jean Renoir e Glauber Rocha esta característica é fato incontornável para compreender de onde brota toda a emoção dramática dos filmes de John Cassavetes. Percebamos entretanto que não é o seu único modo de encenação, e - o mais importante! - não exclui os efeitos atingidos pela montagem, o enquadramento ou os movimento de câmera e de lente. Um ator que é indicado a agir de forma agressiva dentro de uma chave de interpretação de um personagem que ele já visitou espiritualmente com o seu corpo ganhará o seu contorno semântico total, enquanto cena dentro de um esquema narrativo cinematográficao, a partir apenas da conjugação desses vários elementos. Se cinegrafado num plano geral e fixo, um sentido bem diferente de um close com a câmera na mão. Rigor e vigor - como deve acontecer - são, neste cinema, duas faces de uma mesma moeda, assim como ator e personagem.

Maridos

O que é ser um homem? O que é ser um homem para Cassavetes? Acima de tudo é trágico. Trágico pois a raça é frágil, é vaidosa, é neurótica, é violenta, é egoísta, é burra, é triste. É feio, o submundo moral onde se esgueiram os artistas, viciados, agiotas, jogadores, alcoólatras, maridos, por entre as putas, os chefes, as sogras, os amigos e esposas é acima de tudo decadente. É horrível, as relações que se criam entre esses filhos da psicose são patéticas, vulgares, odiosas, insuportavelmente medíocres. O drama desta sociedade segundo Cassavetes tem conceito: o mal-estar. Nela desfilam homens grosseiros, mulheres compulsivas, senhores autoritários, senhoras obsessivas. A histeria e o narcisismo são a tônica, o álcool e o sexo a fuga do eu (tão complicado). O princípio de prazer negativo no esquivar-se do desprazer. Traumas, sublimações, neuroses; o mundo mental, que já fora dissecado por Freud nos sonhos, é agora perscrutado por Cassavetes nos corpos. Colhe-se a alma, e todos os seus complexos. Decanta-se a dança dos relacionamentos, e todos os seus fluxos. O diagnóstico é patológico, crônico e degenerativo.

Ser um homem para Cassavetes? Acima de tudo é mágico. Mágico pois a raça é forte, fascinante, sedutora, honrada, vigorosa, engraçada, inteligente, doce. É belíssima a relação que os homens são capazes de criar entre si; o companheirismo é sagrado, todos sentem isso. E apesar de todos os problemas, de todas as complicações, de todas as chatices, os defeitos, as decepções, as traições, o homem pode ter abrigo - acima do colo feminino - no olhar do amigo, no abraço do parceiro. Uma noite de bebedeira ou uma partida de futebol com aqueles do peito pode curar várias doenças, ressuscitar o prazer pela vida. Apostar uma corrida, se esbofetear, disparar tiros, entornar cachaças, gargalhar, é desses ritos inúteis que se constitui esse sentimento precioso e inefável que só os homens conseguem estabelecer.

Maridos (1970) - comédia humana sobre a vida, a morte, a liberdade, a paternidade, o casamento e a responsabilidade - é uma dessas odes ao homem e o seu poder emocional oceânico (tão fascinante quanto catastrófico, tão apaixonante quanto repugnante). O único “hang out marcha fúnebre” da História do Cinema, este filme, como a maioria dos filmes de John Cassavetes, é uma obra única, diamante da originalidade criativa. É o testemunho de um estilo artístico e de um universo ficcional.

Como expressar – para este homem cassavetiano - o amor presente na dor da perda de um parceiro com um momento de silêncio institucionalizado no funeral da sociedade? Não! Eram precisos três dias! Três dias na sarjeta da mais pura catarse!

O que se tornaram afinal aqueles homens? O que significa dentro deles assumir o papel social que assumem? Maridos, pais, trabalhadores, adultos... em breve defuntos burocraticamente enterrados. Como lidar com o espelho do patético fim? Com a potência da juventude esmaecida pelas rugas do cotidiano? Como agir quando escancarada a farsa? Quando perdida a batalha para o tempo?

Quando penso na cena cassavetiana por excelência me vem a imagem da mesa de jantar, muito álcool e a perdida tradição das canções cantadas à palo seco contaminando os presentes a plenos pulmões. Cena presente em outros filmes de sua carreira, nesta obra ganha contornos metalinguísticos inegáveis. Como uma audição, os diversos povos imigrantes que constituem a América vão cantando as tradicionais músicas do velho e do novo continente. “I dream of Jeanie with the light brown hair...”, canta uma jovem, e nos remete à Faces, à Gena Rowlands, presente no filme aí, exatamente nesse momento de lembrança, o próprio John se emociona e beija-a na boca. Gena estará presente também nas fotos do passado que iniciam o filme, do outro lado da linha quando Gus falar com “sua esposa” pelo telefone público e no último plano, dentro da casa e fora do quadro, quando seus filhos chamam-na para presenciar o retorno do pai pródigo. A cena do bar se estende nessa espécie de audição com Gus, Archie e Harry dirigindo estas pessoas, buscando as interpretações verdadeiras nas músicas escolhidas por elas e na embriaguez das emoções que devem ser suscitadas. Não podemos nos esquecer que, acima de tudo, o poder de Maridos é sobre a paixão entre John Cassavetes, Peter Falk e Ben Gazarra.

É também uma obra ímpar acerca do poder expressivo de uma ausência presente: seja no quarto mosqueteiro que é a causa de tudo; na nostalgia do passado e na utopia do futuro, tão presentes quanto o presente; nas elipses entre sequências, radicalmente experimentadas em cortes sempre impressionantes; e principalmente no fora-de-quadro, elemento que ganha um status de “ritmo da essência”, como se sem ele o filme não balbuciasse nada. Em nenhum outro filme o “plano de conjunto” foi tão expressivo. Povoado e despovoado, rasgado, sufocado pela tríade que, pagando o seu luto, erra pelo intervalo que a morte de um parceiro desencadeou, este espaço - às vezes escuro no fundo de um boteco, às vezes claro nas ruas de Nova York, às vezes claro-escuro na solidão de um metrô ou uma de quadra vazia - é onde o drama vomita-se.

Cassavetes, com sua câmera e seus atores desvelou-se e desvelou-os acima de tudo, para compreender o cinema, a sociedade, e a vida. Só um desgraçado pode amar de forma pura, por momentos. A vida é uma festa encruzilhada à sua ressaca, devemos vivê-la juntos. Evoé Cassavetes, e viva o cinema, que nos ensina sobre a liberdade, a vida e a morte.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Amanhã é dia de cinema em Mosqueiro

Amanhã tem exibição do "D.Juan" em Mosqueiro na pré-estréia do novo filme do Márcio Barradas, "Os Comparsas". Admito que estou mais ansioso para assistir o filme do Márcio que qualquer coisa (além de poder assistir o seu curta experimental "Coração roxo", que nunca tive oportunidade). Outro presente é a presença do meu comparsa Miguel Haoni e da minha comparsa Isabela do Lago no elenco.
Só prazeres e honras, amanhã é dia de cinema em Mosqueiro.

Mairí Produções apresenta:

"Os Comparsas", filme de Marcio Barradas




e os curtas:
"Coração Roxo" de Marcio Barradas e
"D. Juan" de Mateus Moura

Serviço:
dia 19 de março (sábado)
às 20h00
no Espaço Praia Bar, na Praça Matriz em Mosqueiro
Classificação indicativa: 18 anos
ENTRADA FRANCA

Realização:Mairí Produções
Cineclube Amazonas Douro
Associação Paraense de Jovens Críticos de Cinema
Informações: 8356-1799

quarta-feira, 9 de março de 2011

PRIMEIRO TEASER

TESTE DE SOM



esse trenzinho do caipira trilhando trilhando hora chega na estação Ciotat.

terça-feira, 8 de março de 2011

AS COISAS como são (?) – se arranhando entre parágrafos

São ou estão? Foram, serão. É, as coisas, sempre as coisas... a partir da existência.
Fritz Lang em Le Mépris expõe “como se sofre”, pois para se fazer cinema apenas os sonhos não bastam.
O Rafael Couto diz que toda identidade pode ser categorizada barrocamente de forma dual, tratando/entendendo as coisas de um lado luz e um lado treva, vício e virtude, etc... Ao produtor, para a virtude do êxito existir é necessário o vício da ambição caminhando lado a lado. Assim é o ator com a vaidade, e assim é o criador com a loucura. No âmbito do
caos, no entanto, habitarão as regras, e o dual, reconheceremos primeiro que é mais que dual, para depois concluirmos que é uno. É o prisma o buraco negro.
Mas, focar focar! Limitar, é importante. O limite é o pequeno caos, notadamente aquele que comunica o grande caos, com estilo. Sim, focar, sem profundidade, nos olho
s::::::::::::::::::: close-up.

Vamos focar nessa questão da dificuldade de se fazer cinema. Sem puxar sardinha, nem choramingar de vira-lata. Só humilde reflexão... a partir da existência.
Com o que perdemos tempo? Com o que ganhamos tempo? Como aproveitamos ele, o tempo, para nossos projetos?
O que cada um pode espremer do tempo?
Queria muito a figura do produtor ao meu lado, que espremesse do tempo o dinheiro necessário para a sustentabilidade dos projetos sonhados, as agilizações das locações, as construções das possibilidades pragmáticas, as realizações dos detalhes de pré e pós, e tudo mais. Alguém que simplesmente fosse fascinado pelo seu trabalho, que fosse um gênio da lâmpada, um realizador de sonhos, um gestor de idéias, um agente catalisador, um processo físico de ressublimação.
Como se sofre quando não se consegue espremer do tempo aquilo que poderíamos espremer! Fazer afirmações categóricas dizendo que o cinema é uma arte coletiva, ou que o cinema é indústria eu acredito que são reduções. Mas já compreendo, a partir da existência vivida, que um certo cinema – e que me interessa bastante – passa por tais caminhos.
O Ser deve ser afinal esquecido um pouco para a Coisa se materializar? É preciso, para não ser navalhado pelo Processo, mergulhar-se nele enquanto Ator e esquecer um pouco as angústias da alma para interpretar-se enquanto máscara social? É preciso, para esse Sonho fulgurar não apenas detrás da retina, aprender os passos da dança política no manual da burocracia? É daí que vem o gemido de Tarkovski – que era tão mais preocupado com questões metafísicas – de que o cinema é uma arte triste de se fazer?
Escuto um amigo dizer o quanto ele está feliz escrevendo solitário o seu romance... e como ele simplesmente desistiu de fazer cinema para escrever – que é muito mais possível e prazeroso, pois sem gente e tecnologias, dinheiro e produções... Caneta, papel, criatividade, trabalho! Sim, e quando não se escolhe algo? Quando simplesmente não se pode dormir?!
É uma droga – das pesadas – o cinema! A suspensão de um REC é um pico na veia, a capturação de um fragmento mágico de realidade é o prazer adrenalínico do cleptomaníaco, o vislumbre de uma montagem se encaixando é o transe da besta humana no girar homicida da adaga, a renderização é a ejaculação fervendo do necrófilo, o primeiro play a alucinação do moribundo em seu último estertor! Não há hipótese de descrever sensações inefáveis como tais. As suposições, bem dizia Satyr, são para os tolos, a vivência é para os sábios.
É uma estrada só. Quando mais se vê cinema, melhor se enxerga a vida; quanto melhor se enxerga a vida, melhor se compreende o cinema. Quanto melhor se compreende a visão, mais se apura o olhar. E logo a mente, o sonho, o Eu, o contemplar. Se aprende vi-vendo. Se a aprende a filmar vivendo, se filma pra aprender a viver.
Plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho, grande merda! Realização mesmo seria colocar uma escola de samba na avenida, conjugando perfeita e inventivamente todos os quesitos de um desfile. Ou criar uma religião: converter fiéis, criar uma simbologia e rituais que perdurem gerações, inventar um conceito e um imaginário tão fortes que civilizações se destruam por ele.
Ou apenas fazer um filme à maneira do sonho pessoal, proporcionar à eternidade o efêmero construído.
Como pudermos façamos enfim, materializemos essa luz que ofusca onírica.
Transubstanciação. PRIMEIRO, e antes de tudo, e depois, depois de tudo. As coisas, é.

Mateos.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Relato de uma emoção Nick Ray (II)

"A arte lírica é a mais violenta e a mais violenta a mais lírica", disse sobre o cinema de Fuller o português José Oliveira. É sim o cinema de Fuller; e sempre um apaixonado fui por isso, assim como por Buñuel, Lang, Bava, Tarantino, Ray. "O crime é consequência de uma grande emoção mais direta que o amor", diz o pergonagem, alter-ego de Lang, em O segredo atrás da porta - personagem onde a maior prova de amor é o assassínio do ser amado.
Em
In a lonely place é este o movimento emocional chave, que estabelece a matéria-prima desta poesia maldita: a paixão - que se materializa em versos, socos, afagos e tolices. Um homem dominado pela paixão só pode cometer as maiores façanhas, e as piores decepções. Não há meio termo, em cada ação é a vida que se arrisca - de si e daqueles que o amam.
O set-piece de Ray, que poeticamente sintetiza todo esse ethos pathos de seres destinados à tragédia, é também um dos ápices dramáticos da história do cinema.
Os que convivem com esta persona, na tentativa de proteção concomitante ao medo, normalmente mente, mascara; e estes não suportam a infidelidade. Paranóicos por excelência também, explodem em violência quando inseguros assim como explodem em amor quando seguros. O poder da emoção mais sincera emana desses olhos e gestos em momentos como tais; e aí onde
o personagem explode o sentimento se desabrocha, e vislumbrasse o inflamável (aquilo que anima).
O automóvel em alta velocidade é um dos símbolos que podem expressar tal ser-sentimento. Como um furacão, acompanhamos o furor de Dixie Steele (Bogart) devastando as estradas rumo ao seu ódio. Sua mulher (Grahame) - que faíscou a dinamite com suas falsidades - teme, agora mais que nunca, o que aquele homem (provável futuro marido) pode fazer em seus acessos de raiva.
Nós, espectadores acompanhando o thriller, nos angustiamos a cada dúbio gesto de Bogart, como quando com a pedra em mãos se prepara para esmagar a cabeça de um inocente ou quando com a mão em torno de Grahame faz o gesto que encenou no relato ficcional de como poderia ter acontecido a morte da jovem pela qual é suspeito.

"I was born when she kissed me, i died when she left me, i lived a few weeks while she loved me". Ele recita na mais pura calmaria, como se enfim ele ali atingisse o olho do furacão, como se enfim ali nós pudéssemos contemplar todas as cores fortes daquele espectro turbilhonante de emoções que o formam em prisma.
Enquanto ela agora dirige de volta, ele, num gesto de amor, a envolve com o braço, completando o poema que ela, repetindo suas palavras, buscava recitar. Esse gesto, que há alguns momentos prefigurava um gesto de morte e violência, não recebe aqui apenas uma repetição para salvaguardar uma ambiguidade, ou tão-somente esclarecer uma falsa suspeita. Esse gesto é o gesto que, em ação, revela esta essência, essa emoção que nasce dessa violenta luz, dessa terna treva.

Os versos retornarão ao final, "like a farewell note", enquanto o amor se escorre como ela na parede, enquanto ele, em "the end", assim como no início, retorna ao seu locus: "in a lonely place".
Mateos.