domingo, 6 de novembro de 2011

O cinema é sexualmente transmissível


Lógico que o filme não é sobre as injustiças sociais, ou sobre a Amazônia, ou etc, a única região eternizada em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é a do corpo, os desbravadores Beto Brant e Renato Ciasca sonham nele grilar a alma.

Marçal Aquino escreve, habita por excelência o campo da ficção. Se fala de Pará, São Paulo ou Porto Alegre, é através da língua escrita. Não registra (como o cinema) os fluxos desses exteriores, grafa os sentidos e paisagens nos interiores das palavras. Não é 'registro' – por excelência. Nenhum deles aliás - Marçal (escritor), Beto & Ciasca (cineastas) ou Cecim (alquimista) - desejam o registro objetivo; não desejam o mundo tal qual, mas o mundo in-possível > a partir da linguagem, vindo da vida < mas para chegar à ela novamente, por outra instância, sobretudo nela porém – por excelência no cinema.


A visão dos cineastas, tal qual a do protagonista Cauby, é a do forasteiro que está bem distante da militância política, é muito mais o artista visual e o errante curioso. Interessam-lhe as cores, os ângulos, as mulheres, as imagens, as revelações; a questão política no meio, ou atrás (background). Cenário sensorial. Se filmar em
um lugar, não se deve negar a vida que pulsa neste habitat, as pessoas que agem nesta cultura, as religiões que se manifestam, os movimentos sociais que se dinamitam, mas tratá-los, ademais, exatamente como os pássaros que ali gorjeiam, a umidade que faz os corpos brilharem, a luminosidade que dá certa cor particular às coisas, os sabores do ar, os dissabores dos conflitos traduzidos em olhares, gestos, rugas, semblantes, enfim, tratá-lo, nas palavras de Beto Brant, pelo menos, como “cenário sensorial”. O interior do Pará é este cenário no filme, o seu background, o que está em campo em profundidade. Como o caso é cinema – não literatura – o cineasta não descreve uma paisagem que inventa em símbolos, mas captura o imanente que pulsa em movimento.

Não podemos cobrar consciência política de um cineasta que se enxerga ele próprio co
mo o “forasteiro ingênuo”, assim como não podemos cobrá-lo do personagem principal, que assim também o é. Nesse mesmo dilema, porém, os próprios autores entram às vezes, e o filme exibe a sua fragilidade numa esfera de posicionamento político.

Mas a esfera central é outra...

Cauby quer o corpo, Ernani a alma. A nudez é o signo mais nu da Pureza: na nudez da alma encontramos a Verdade, na nudez do corpo a Beleza. A Comunhão, sentido talvez de toda a existência, se dá mais plenamente no sexo, e a morte em vida (o Orgasmo) se dá no Movimento, e no encontro de corpos. É possível uma máquina cinegráfica embalsamar o Amor em Ação? É possível promover essa sensação (estética por excelência) do público vivenciar o Estado da Paixão no Centro do Instinto? É possível capturar a Duração da Entrega? A resposta é: que é possível a Imagem disso tudo.

Fotografia. Cauby – se alguma coisa pode se afirmar sobre ele – é que ele é um fotógr
afo. E, se podemos especificar: um apaixonado por fotografar o Corpo (feminino). Só uma vez se fotografa a Alma durante o filme – a imagem fica no silêncio, significa-se em elipse; é quando Ela o fotografa na orla de Santarém. Só uma vez, entretanto, se Cinegrafa a alma – temos que esperar até o último plano. Ela.

É um cântico poderoso, sobre a tentativa pelo Homem de resgate da Pureza, reconhecida na Beleza de um corpo de Mulher (quando falo "corpo de mulher" não falo seios, bunda e buceta, falo olhos, pele, si
nais, sovaco, barriga, virilha, braços, pêlos, púbis, seios, bunda e buceta, mas sobretudo movimento, ou resumindo em uma palavra, Graça). O Homem é representado por Cauby, Ernani, e até pelo jornalista, a Mulher por Lavínia, ou Lúcia, ou uma prostituta jogada na calçada.

Não existem “piores notícias de lindos lábios” de ninguém, o nome do filme é péssimo (diferente do nome do livro, que é ótimo na unidade da obra de Marçal). Talvez “Eu só poderia receber qualquer fagulha de alma do seu milagroso corpo em movimento”, ou algo que o valha fosse mais fiel à essência que se busca.


Este texto não é sobre Camila Pitanga, é sobre o seu corpo cinegrafado. O corpo não tem nome, nomes são símbolos, símbolos são da esfera intelectual, da alçada da mente. O corpo é da esfera motora, da alçada do instin
to. Por qual delas atingir a alma?
A metodologia de filmagem de apreensão disso tudo foi o cinegrafista solto entre os pontos demarcados grafando o movimento da ação desses corpos em atrito, entre intervalo, sob a gravidade das induções. A metodologia de montagem já outro passo, de construção do olhar, de edificação dos sentidos finais de um discurso estético num enredo dramático.
-
Citei Cecim lá em cima porque é o livro que o jornalista deixa com dedicatória pro Cauby: Viagem a Andara, O Livro Invisível. Lembrei dele falando que os críticos ficavam doidos com ele quando o mesmo escrevia críticas porque ele fazia reflexões gigantescas sobre cinema em filmes que não valiam nada, e que ele mesmo admitia. Mas o que não admitia era perder 1 hora e meia vendo um filme ruim, que mesmo durante a sessão ele começava a brincar com a película, construir novos significados, inventar novos enredos, novas relações entre os personagens. Não quero dizer que este filme do qual falo é ruim, muito pelo contrário, é um grande filme!, mas percebi no fim do texto que cada dia me aproximo mais do ensaio que da crítica. O filme e a vida sendo pontos de partida para reflexão de processos em andamento e não mais objetos de análise.
-
Contrariando porém, queria analisar a cena que considero a mais bela do filme. Aquela em que esse steady cam flutuante em plano longo enfim ganha seu contorno dramático enquanto elemento estrutural essencial de uma unidade.

Nada mais, nada menos que o Clímax! O encontro dos três. Quando Cauby pressente a presença de Lavínia no portão de sua casa (o mesmo pressentimento – antes com sorriso no rosto – quando da apresentação dessa personagem), e vai resgatá-la. Todo o movimento simbólico eterno do acolhimento ao lar, e então o momento (Blow Up por excelência) do artista louco pela arte da fotografia que, acima de qualquer moral, quer um retrato daquele momento que se intensificará e abrirá um abismo ainda maior - agora moral - com a notícia de um filho (talvez aí a notícia dos lindos lábios faça realmente algum sentido!)... e então a chegada de Ernani e o outro resgate, agora numa Pietá masculina, com direito a olhar sem contracampo para Cauby.


Depois aquela elipse maravilhosa!

Continua... (?)

Mateos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário