“Cinema é cachoeira” (Humberto
Mauro)
Assistir a “Últimas conversas” foi um banho de cachoeira, desses clarividentes e que limpam a alma. E volumoso.
Uma experiência cognitiva tripla.
Havia em minha psiquê um espectador-antropólogo, que acompanhava o mural do
imaginário adolescente carioca de classe média suburbana, e que em cada retrato
de cada ator social aprofundava-se em percepção acerca de uma realidade social
complexa e múltipla, cheia de traumas e buscas de identidade. Dialogava aqui
dentro este espectador com cada uma delas, em uma busca pessoal de compreensão
dessa fase da vida. A juventude: o que nos acrescenta de experiência? Como
lidar melhor com o outro (jovem), que inevitavelmente teremos que nos
relacionar? Com o filho futuro, que inevitavelmente teremos que educar? Com o
próprio passado recente, que, agora completando 28 anos, inevitavelmente,
haveria de me despedir? Era o último filme de Coutinho que eu teria essa chance, de dialogar sem precisar
falar, de me identificar podendo me distanciar. Essa experiência que esse
cinema por tantos anos me proporcionou estava escrevendo naquela 1 hora e
meia o seu ponto final. “Antropologia compartilhada”, nenhuma ciência
foi tão longe neste efeito “eu-tu” quanto o Documentário.
Além
deste havia o espectador-cinéfilo. Aquele que acompanhava o “último filme de
Coutinho”, como um aprendiz que ouve as últimas palavras do mestre. Esse diálogo
acontecia diretamente também com Jordana Berg (montadora) e João Moreira Salles
(finalizador). Seu vaso comunicante ecoava principalmente no extracampo, em
toda história de morte daquele que ali realizava, sem saber, seu último
trabalho.
Desde o “prólogo”, onde Coutinho está vivenciando uma de suas já
tradicionais crises de criação (seu lado juvenil que jamais o deixou) até o
momento em que um de seus entrevistados fala de um “surto”, este espectador
aqui acompanhava, com os olhos trêmulos de um estudante-cirurgião, as delicadas
escolhas morais da montagem, e sentia em cada imagem o contra-peso da história que a vida
enterrou, e da filmografia que um espírito construiu, tijolo a tijolo, e que,
enquanto obra cinematográfica, hoje é patrimônio da humanidade.
Ao fim do “filme principal” vemos o diretor a dirigir seu ator social, criando um signo simples, que iria finalizar o filme: a porta que todos os outros entrevistados fechavam ao sair seria deixada aberta, para que ficasse claro que todo aquele pulsante imaginário que foi apresentado em tão poucos seres é só uma ínfima parte da humanidade. O “epílogo”, porém, veio destruir o simples, para que a simplicidade viesse dinamitar o construído. Deixou para o espectador a ausência dessa possibilidade de um filme que poderia ter existido se o acaso da vida não tivesse arrastado com suas asas a existência do cineasta nas tramas mais absurdas, que uma ficção jamais conseguiria imaginar. Uma porta aberta talvez seja o maior signo cinematográfico da possibilidade e, concomitante, da espera. O suspense...
Depois de ver o adolescente e o velho, faltava a esse terceiro-espectador - que também em mim a tudo acompanhava - ver a criança. E aí sim: a espiral cognitiva enfim se completava no enigma que enfim devorava-me assim que o resolvia.
Falo do espectador-adulto, que há pouco nascera (durante a sessão - que no meu caso se tornou uma sessão de parto). O doloroso e silencioso parto do adulto. As primeiras palavras que ele ouviu vinham da criança: “Deus foi um homem que morreu”. A primeira cena veio da porta: a criança dominando o espaço, encantando a todos com sua presença, saindo de quadro depois como lhe pedem, trazendo a esperança como uma estrela impiedosa, voltando surpreendentemente para uma ultima brincadeira e enfim abençoando a todos nós, espécie humana, para qualquer tragédia vindoura.
A fé que Coutinho no “prólogo” diz ser difícil recuperar, ali, naquele plano – o último de sua obra - vemos renascer, “como flores na água”. Não sei se lhe faltou de novo este sentimento em seu último suspiro, mas – não só por ele, como também por Jordana Berg e João Moreira Salles –, nesta dimensão do eterno que a memória do cinema abre, lhe foi concedida essa graça.
Com Coutinho aprendi, entre tantas coisas, que olhar com muita ternura é olhar com extrema dureza; que ouvir profundamente é ser curioso da verdade que o outro mascara com o seu discurso. Ao olhar e ouvir o mundo como um trágico, esta ciência oculta descoberta por Coutinho guardará para sempre seus enigmas, pois respostas ele nunca buscou. Para o espectador que sou - mais que 3 - trouxe o eterno espelho novo onde, hoje, do outro lado, me olho, me escuto e me movo. Observo, ouço e ajo.
Ave.
Mateus Moura.
Mateus Moura.