Se é do meu Seio que
bebem, e ao meu Ventre que retornarão, é no meu Corpo que habitam, e é nele
que, levados, rolam, jogam, batem, abrem os caroços de tucumã; engendram minha
imaginação. E se sonho todo o tempo, pois sou vida-prima assim, feita de órgãos
imaginários, é devido aos devaneios e ações destes seres, vários. Se me chamam
Belém, Santa Maria do Grão, cidade das mangueiras, Metrópole da Amazônia, Gaya,
não posso debater, me debater, mas amar, receber, ter. Fazer o quê? Nós,
cidades, com açaí ou sem açaí, somos todas farinha do mesmo saco: a Família.
MANIFESTO-ME hÀ FAMILIA
Eu:
Por que utilizo a linguagem verbal para pensar, também, a
audiovisual? Porque é assim que o espírito em mim se movimenta. E posso ser
infiel a tudo, jamais ao espírito...
E falando em espírito, Espírito, quem fala aqui é uma
voz/corpo id-entidade, Um anônimo membro-participador da Família.
Esse não vem falar nada de novo, vem falar sobre o novo que
ta aí; com palavras de um agora.
Diz:
O Cinema está morto, e foi a Família. Agora existe outra
coisa, que parece retornar em espiral à primeira arte do cinematógrafo, mas que
já é outra coisa. O Cinema, mesmo morto, ainda sobrevive, os zumbis sempre
existirão; vagam e são belos, e ainda deixam rastros... Mas já há outra coisa, que existe também no
agora, outra coisa que não é o Cinema, mas que não se nomeia de outra forma que
não Cinema. É/ou Audiovisual.
De fato:
O que aconteceu é que a Família tomou as rédeas da
cerimônia... não é mais a passível receptora das imagens dos iluminados, não se
inclina mais às vozes dos sacerdotes, não se espanta mais com o truque dos
prestidigitadores, não se encanta mais com o delírio dos profetas... a Família
profanou o culto, trans-auratizou a Entidade... a liturgia sacra metamorfoseou-se
em festa popular... e é nesse momento que o índex parece receber sua vingança;
os Livros, as Regras, as Estéticas, toda essa Tradição Maravilhosa que, não
obstante, sufoca o Novo, está sendo queimada na fogueira de São João, espancada
pelo porrete de Exu.
A voz murmura, à vós?:
Aqui é o distante do Brasil, não tem contexto econômico
apropriado, não tem técnica ou maquinário avançado, não tem sobras de
expediente temporal adequados para fazer o tal Cinema... Ótimo! Matemos o
Cinema, o tal... Não fui eu, nem tu, foi a Família! Há Tao!
Foi a Família que empunhou câmeras para filmar seu diário de
impressões sobre a realidade, foi a Família que resolveu comunicar sentimentos
a outrem na forma audiovisual, foi a Família que resolveu fazer denúncias do que
considerava injusto a partir do rifle de captura do presente, foi a Família que
despudoradamente registrou os seus momentos mais íntimos, mais perversos, mais
sacanas, foi a Família que quebrou os tabus, a indústria, a elite, foi a
Família que ousou conectar todo o mundo numa rede invisível para compartilhar
universos.
A Família é bagunceira, é espontânea, é barroca, é barraco,
é canibal, é bárbara, é aberta, é pagã, é pã. Lincha o bandido sem culpa,
degola a galinha, assassina o parente, invade a propriedade, inventa na
miséria, ocupa a rua, corteja pelo centro, escarnece do imposto, avacalha o
plausível, se embriaga de si. É a insurrecta incoerência lúcida do
revolucionário, a sofisticada intimidade intuitiva do primitivo. Fusão entre o
diletantismo militante e o militantismo diletante, o Cinema feito pela Família
parte da necessidade primeira do prazer interno de religamento com a existência
e o ser. Seguindo os princípios da sevirosofia (sabedoria do “se vira”), a
Família é uma entidade com fins criativos-destrutivos (enfrentativos). Erótica,
ótica, ouvidos abertos, tapada, nós-outros. Somos todos atores do nosso
complexo. Édipo. Transeunte.
A poesia sonha, deus realiza, a máquina eterniza, o homem
fabrica. Na dramaturgia do caos, atos. A Comédia Humana & Imortal,
dissolvente de estereótipos, acredita acima de tudo no acaso. E como o Cinema
não está no campo das artes, mas no campo das linguagens - como a língua
escrita não é só feita de romances, dramaturgias e poesias, mas de ciência,
filosofia, bula, diário - assim, aprendeu a Família esta linguagem, e hoje faz
cartões, bilhetes, pixos, garranchos, manifestos, respostas, postais. A Família
ta cheia de cinegraphistas, esses photógraphos dos vinte e tantos frames por
segundo, vulgarmente não-conhecidos como os embusteiros do tempo.
A Vida é uma ilusão, o Sonho é uma ilusão, o Cinema é uma Ilusão.
Só a Respiração é Real: o movimento de sucção do Mundo para dentro de um Ente
(inspiração), a pausa, e o movimento de expiração (quando o Ente devolve ao
Mundo o que o Ser formatou no intervalo). Não é um movimento MEU, nem TEU, é um
movimento da VIDA, que participamos ademais, às vezes. A Criação é algo
extremamente individual & extremamente coletivo: é o símbolo da alteridade.
O que chamam de “estilo” é figura retórica para expressar o que é da categoria
do acidente (o ego em corpo que se configura enquanto identidade). A substância
que NÓS somos é a Família, eu/tu/ele é um acidente dessa essência. Um no Zero.
0
A Voz diz, à vós diz:
Não é tão-somente acerca de Arte o que está acontecendo, mas
de um novo Realismo, a partir da realidade e das ferramentas. Tecnologia nova,
linguagem antiga (se reformulando: estética não estática, antes em busca do
extático, é a ética de auto-descoberta-do-outro).
Porque a Família à Família grita:
A-vida-deve-ser-um-dado-lúdico. Não deve haver diferença, na
tela, entre o real e o imaginário; assim como não deve haver diferença, para a
mente, entre a reflexão em conceitos e a ação em formas: todos devem caminhar
para as essências. Entre-mentes: é o convite de entrar; viver, de novo e
sempre, o que é o primeiro de tudo: a mentira – só esse atravessamento é
verdadeiro. “Fazer arte” é se exprimir com a responsabilidade da liberdade
sendo linguagem. É naturalmente um movimento ético e simbólico (estético), da
alçada do delírio & do artifício. É onde, finalmente atravessado no/pelo
mundo, o ente está pleno em sua solidão, e de fato é o Um integrado. A Família
é o Zero. 0000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000.
Somos Um no Zero.
A Família não tem infinitos olhos, mas infinitos olhares.
Do meu olhar (é só minha forma de apontar a vida... flecha)
do agora, saiu >
< E de enfim, e depois de tudo isso?
Zero. Um. Vaga.
Neste mar de potência, por que rio remarás, cabano, caboclo,
urbano, humano? Quem és, a que fostes destinado?, pergunta a cidade.
*ilustração de Leandro Bender
*publicado na revista Gotaz (http://issuu.com/gotaz/docs/revista_gotaz_final_web/5)