segunda-feira, 7 de março de 2011

Relato de uma emoção Nick Ray (II)

"A arte lírica é a mais violenta e a mais violenta a mais lírica", disse sobre o cinema de Fuller o português José Oliveira. É sim o cinema de Fuller; e sempre um apaixonado fui por isso, assim como por Buñuel, Lang, Bava, Tarantino, Ray. "O crime é consequência de uma grande emoção mais direta que o amor", diz o pergonagem, alter-ego de Lang, em O segredo atrás da porta - personagem onde a maior prova de amor é o assassínio do ser amado.
Em
In a lonely place é este o movimento emocional chave, que estabelece a matéria-prima desta poesia maldita: a paixão - que se materializa em versos, socos, afagos e tolices. Um homem dominado pela paixão só pode cometer as maiores façanhas, e as piores decepções. Não há meio termo, em cada ação é a vida que se arrisca - de si e daqueles que o amam.
O set-piece de Ray, que poeticamente sintetiza todo esse ethos pathos de seres destinados à tragédia, é também um dos ápices dramáticos da história do cinema.
Os que convivem com esta persona, na tentativa de proteção concomitante ao medo, normalmente mente, mascara; e estes não suportam a infidelidade. Paranóicos por excelência também, explodem em violência quando inseguros assim como explodem em amor quando seguros. O poder da emoção mais sincera emana desses olhos e gestos em momentos como tais; e aí onde
o personagem explode o sentimento se desabrocha, e vislumbrasse o inflamável (aquilo que anima).
O automóvel em alta velocidade é um dos símbolos que podem expressar tal ser-sentimento. Como um furacão, acompanhamos o furor de Dixie Steele (Bogart) devastando as estradas rumo ao seu ódio. Sua mulher (Grahame) - que faíscou a dinamite com suas falsidades - teme, agora mais que nunca, o que aquele homem (provável futuro marido) pode fazer em seus acessos de raiva.
Nós, espectadores acompanhando o thriller, nos angustiamos a cada dúbio gesto de Bogart, como quando com a pedra em mãos se prepara para esmagar a cabeça de um inocente ou quando com a mão em torno de Grahame faz o gesto que encenou no relato ficcional de como poderia ter acontecido a morte da jovem pela qual é suspeito.

"I was born when she kissed me, i died when she left me, i lived a few weeks while she loved me". Ele recita na mais pura calmaria, como se enfim ele ali atingisse o olho do furacão, como se enfim ali nós pudéssemos contemplar todas as cores fortes daquele espectro turbilhonante de emoções que o formam em prisma.
Enquanto ela agora dirige de volta, ele, num gesto de amor, a envolve com o braço, completando o poema que ela, repetindo suas palavras, buscava recitar. Esse gesto, que há alguns momentos prefigurava um gesto de morte e violência, não recebe aqui apenas uma repetição para salvaguardar uma ambiguidade, ou tão-somente esclarecer uma falsa suspeita. Esse gesto é o gesto que, em ação, revela esta essência, essa emoção que nasce dessa violenta luz, dessa terna treva.

Os versos retornarão ao final, "like a farewell note", enquanto o amor se escorre como ela na parede, enquanto ele, em "the end", assim como no início, retorna ao seu locus: "in a lonely place".
Mateos.

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