terça-feira, 8 de junho de 2010

Hitchcock na essência do mundo


Janela indiscreta é a obra-prima de um gênio no ápice de sua criatividade e rigor. Recheado de cenas antológicas e ontológicos, é um dos filmes da minha vida. A apresentação dos personagens já basta para colocar o cineasta inglês onde ele merece, e onde está hoje: num trono da casa chamada cinema. As cenas antológicas são aquelas que vão para a antologia do cinema, as ontológicas são aquelas que pensam o cinema em sua essência.
Jeff (incorporado por James Stewart) é o fotógrafo aventureiro que sofreu um acidente de trabalho e está confinado três semanas numa cadeira de rodas de frente para a sua janela, que tem vista para a vizinhança (ou em outras palavras: o mundo). E a primeira cena antológica do filme vem na apresentação estritamente áudio-visual da situação deste personagem. Em travellings Hitchcock nos diz tudo sem uma palavra. Mais tarde ele explica com palavras o que aconteceu. Questão de prevenção com o público desatento, afinal, para Hitch, perder o espectador por incompreensão intelectual do enredo é a morte do seu projeto. Tudo é preciso estar claro para o espectador, é a manipulação das emoções o jogo mais prazeroso para esse cineasta; se o espectador está perdido tentando decifrar o que não entendeu consequentemente perde o máximo que a cena que se transcorre pode oferecer emocionalmente; perde a identificação inconsciente com o personagem, perde a sensação universal da angústia, perde, em suma, o suspense. Alfred Hitchcock foi vanguardista do cinema clássico; experimentava como ninguém, mas tudo a favor da construção dramática da narrativa.
Uma cena ontológica, não obstante, ocorre antes da primeira cena antológica. Durante os créditos assistimos as persianas sendo recolhidas e a grande janela enquadrada enquanto passam os créditos. Nos diz Hitchcock com imagens que acabou de ser escancarado para nós, peeping toms (ou: espectadores), o mundo da ilusão – aquele que enxergamos com os olhos (o cinema, mas também nossa própria vizinhança). Mas esse mundo (que é o mundo mesmo, enquanto construção cósmica inteligente), será mediado por um fotógrafo, que o vê, mas que o ‘enxerga’ através de lentes, o completa através da imaginação. Seria Jeff alter-ego de Alfred Hitchcock - cineasta? Não confundindo autor com narrador, acredito que o personagem é no mínimo símbolo dos espectadores que vivem a aventura de produzir imagens, além de apenas observá-las.



A aparição de Lisa Fremont (a mulher mais linda do mundo: Grace Kelly) é a segunda cena antológica. Das trevas surge um fantasma, no big close-up o anjo, no rosto do herói que dorme a sombra, no slow-motion o despertar num beijo erótico de cinema. Inefável.

Todos nós que temos o sentido da visão vemos o mundo de uma forma única, através dos nossos olhos (as tais “janelas da alma”). O que Hitchcock propõe a si mesmo em Janela Indiscreta é a materialização desse mundo subjetivo e sua apercepção. O que seria um brainstorm vira um filme impuro de dois gêneros. O cineasta das massas emociona com o filme de mistério e entretém com a comédia de casamento. Nesse ínterim filosofa por um viés transcedental o cinema enquanto registro físico-poético da essência do imaginar, sócio-psicanalisa com humor as relações amorosas e as neuroses masculinas e femininas de seu tempo, dialoga metalinguisticaironicamente com a História do cinema e dos gêneros de que se serve e capta com a câmera os mais belos quadros de amor e medo de sua prolífica carreira artística. Nem mil palavras por imagem podem descrever todas as dimensões de Janela Indiscreta.

Com o cinema (e a arte em geral) aprendemos a viver. Após assistir os personagens e suas ações, refletimos as nossas, os nossos. Jeff e Lisa divagam seus problemas conjugais a partir das análises de cada janela, como se cada uma fosse um canal onde se propõe uma forma de espetáculo da vida. Eles, como nós, teriam de escolher qual se acostumar e seguir. Afinal, constituir família pressupõe um script social, assim como viver uma vida de aventuras parece não permitir confortos como o “happy end” ou o sexo ao som de violinos. Hitchcock acredita, como Sigmund Freud e Jean Renoir, não apenas que vive na “sociedade do espetáculo”, mas que a sociedade em si (qualquer que seja e cada qual com suas convenções) encerra em sua essência a idéia do espetáculo, cabendo a todos nós ocupar um papel, e representá-lo.

Um filme de montagem & mise-en-scène & enquadramento & movimento de câmera em uníssona unidade artística, em zênite estilístico. Cada sequência é um tratado misterioso, cada quadro uma forma lapidada da naturalidade da criação em estado de graça.

Ja tinha escrito sobre o filme em outra ocasião aqui no blog (http://cinemateusmoura.blogspot.com/2009/08/e-so-isso.html). Por hoje é só isso,

Mateus Moura.

Um comentário:

  1. Existem certos filmes que tem que ser vistos com lágrimas nos olhos e com a mão no coração.
    Existem certos textos que podem nunca dizer tudo que há para ser dito sobre esses filmes (são inesgotáveis) mas que nos dão uma sensação rara de terem alcançado o "coração selvagem" da obra.
    Que bom estar diante dos dois.

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