O quase sorriso de um rosto, um início-mistério que dança como valsinha de composto binário: cabelo enroladinho no dedo. Uma apresentação da personagem que nunca se apresenta por inteiro – mas isso só se confirma na reminiscência das imagens que surgem até o fundo branco, ao final do filme. Quem é D JUAN?
Após ver a mulher que não se mostra, conhecemos um homem e como ele se enquadra: um cara casado. Ele é quem rege a dança das imagens. O compromisso de objetividade que aguarda o expectador é traído pela fantasia do homem (Ramón) seduzido pelas imagens que ele mesmo concebe. A câmera registra uma relação de atração que mesmo em registro não se comprova, pois se disfarça como uma narrativa de devaneios e pormenores morais que sempre retornam, e marcam-se pelo enquadramento do personagem principal à sua condição (a câmera sempre leal à aliança).
Os efeitos dessa direção surtem, mas uma seqüência de extrema importância deixar a desejar: a cena da perseguição no momento de uma aula de teatro. A atividade dos atores não parece um exercício de fato e, considerando a câmera nesse instante como objetiva e documental, a perseguição entre os dois personagens principais é muito explícita e não passaria tão despercebida pelos demais atores. A falta de verossimilhança provoca uma perda no tom, infelizmente. Por outro lado, a cena não perde seu valor e efeito, pois apresenta o ritmo do som como fundamental marcação da atmosfera criada no filme e como metáfora ao ritmo intenso do desejo crescente.
O filme, sem gênero predominante, confirma-se assinalado por sobressaltos do barulho ambiente, do ritmo das aulas e do silêncio do personagem principal (Ramón). A encenação e as aulas no teatro são a realidade, onde se configura o tempo e o espaço físico do personagem que se perde em divagações. Do devaneio ao desvario há um enlace entre o eu do homem (Ramón) e aquilo que a imagem da mulher (Giovanna) lhe transluz. Ele quer ela. Hesita... e também se entrega a fantasiar. É então que percebemos que som, iluminação e enquadramento são a tradução dos sentimentos e das sensações do protagonista (Ramón), tradução às vezes melancólica e ingênua; às vezes tensa e oclusiva.
Após conhecermos a imagem, a figura daquela mulher se apresenta ao personagem principal de forma já não tanto enigmática, pois é retratada por meio de um olhar intenso e desejoso (a câmera registra a personagem de Giovanna com um fiozinho de cabelo na boca, cheia de malícia). Campo e contra-campo, ele e ela, mas quem é que vê? A câmera ainda é imaginação ou é comprobatória de uma cobiça agora mútua?
A aliança é posta ao jogo, na mesa de bar. A câmera aparentemente mais próxima daquela objetividade inicial, mostra-se também embriagante. O que Ele (Ramón) vê? Ao expectador é apresentada novamente a fantasia, dessa vez mais simbólica e mitológica: a mulher como alucinação endeusada, figura divina. A fusão das imagens nessa parte é essencial para compreender que aquela mulher (Giovanna) é na verdade uma sobreposição de imagens que surgem na cabeça do personagem (Ramón), sendo múltipla ao mesmo tempo em que é única. Aquele homem, ator de si mesmo, veste sua máscara e dá glória, de braços abertos, totalmente entregue à contemplação. A representação fantasiosa daquela mulher (Giovanna) corresponde aos seus anseios desejosos: selvagem, seduz, ronrona voraz, dona de si e serva da bestialidade humana. É celestial e endiabrada.
A câmera surge com uma terceira função, diferente do registro da realidade ou da fantasia, a câmera é testemunha: o homem (Ramón) é vítima de si, está aflito: surge em posição fetal, num espaço vazio que lhe é externo e interior: eis a sua nova condição. Ela (Giovanna): cabelo no rosto, cabisbaixa, imóvel: novamente uma incógnita! A câmera que no início do filme parece criminalizar toda vez que aponta para a aliança, agora é justa à todas as perspectivas dos “fatos”.
Palco, atores e um filme que se faz: a câmera volta a documentar. Insubordinada à fantasia, o plano é aberto e geral: visão de todos nós. A câmera é platéia presente, espectadora. Não há mais simbologia, apenas a realidade do teatro. O que vemos?
O diretor escolhe o elenco, mas é a câmera que designa os papéis – deixa-nos notar a brusca sutileza das expressões faciais. No momento do ensaio, o trecho encenado é irônico e muito significativo. Afinal, não era D Juan o conquistador? Quem encena esse papel? Temos aqui o contraponto do texto dramaturgo e do texto-imagem que se compôs ao longo do filme, tal como o contraponto da fantasia lírica e da realidade tomada como nota.
O diretor (Mateus) aparece sentado frente a tudo, mas de costas pro mundo. Ele diz: “Ação!” e os atores contracenam. Entendemos que aquela imagem nesse momento é concebida pelo personagem-diretor (Mateus), assim como todas as imagens que se entrecruzam entre realidade, fantasia e testemunho são na verdade concebidas pelo diretor do filme (que também é o Mateus). Eis um discurso puramente meta-artístico que, mesmo quando não proposital, está na alma e na obra de todo artista! Idéia clara que se sustenta na seqüência em que o beijo se finda na direção do diretor (preservo a ambigüidade).
Nessa seqüência, infelizmente, a cena do beijo não consegue atingir o seu potencial. Nem tanto pela movimentação de câmera que a antecede, mas pelos efeitos sonoros. O oito que a câmera registra em volta dos personagens é a parte mais importante do filme, pois é onde a realidade e a fantasia são uma só. O som e a ausência de som são muito importantes em D JUAN. Nessa cena, ainda que o efeito seja forte, o silêncio não alcança seu significado, pois não é ulterior a um fundo musical. Se assim fosse, silenciaria tudo aquilo o que tem vontade de dizer, mas não diz. Perde-se uma das feições mais interessantes do filme que é justamente a hesitação...
Solto, sem acontecimentos de começo ou fim, o filme não se prende a um enredo, titubeia a seu favor! D JUAN mostra alguns momentos “reais” aos personagens, momentos que se intercalam com a duração intemporal do “sonhar acordado” de um único personagem.
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