embriaguez
O que esperar de um alcoólatra? Frases mal pronunciadas, desejos obscuros escancarados, gestos aparentemente impossíveis ensaiados, erros (errâncias?).
A loucura, como o crime, a droga, a misoginia são fenômenos por vezes amiúde fetichizados, por vezes amiúde moralizados. Álcool. Fiquemos com o ethos de quem compartilha deste vício, com o pathos de quem alimenta essa virtude. Os efeitos deste líquido milenar construíram a História da Humanidade, destruíram Civilizações. Paliativo oficial do homem em todas as culturas ao redor do mundo, o álcool é a válvula de escape mais rudimentar e nobre ao lado da contemplação artística - ambas nos iludem do mundo externo, nos iluminam o mundo interno; ambas nos revelam, nos consomem.
Onde nasceu a embriaguez, quando ela se impôs como regra cultural em todo o mundo? São perguntas que eu não saberia responder... A conclusão é apenas que o álcool é um dos assuntos humanos mais importantes, tratado nesta obra não por quem o domina, mas mais propriamente por quem é dominado por ele.
John Cassavetes viveu, amou e filmou sob o signo da embriaguez, para atingir as trevas do ser, os traumas das relações e os fluxos dos corpos. Sua câmera, no momento errado (errante?) se colocou no fundo dos olhos desesperados dos que fogem de sua psiquê. Contemplamos faces. Entre a histeria e seus barbitúricos se vive esse balé trágico nesta selva escura. Entre a solidão e a relação com o próximo se constroem essas quimeras: casamentos, filhos, amantes, amor. Entre o complicado homem John Cassavetes e a não menos complicada sociedade americana surgiu este vômito bêbado, sincero e catastrófico, digno de revolta e de pena, fascinante e indigesto. Nasceram obras à eternidade.
utopia
Os maniqueísmos melodramáticas não são do feitio de John Cassavetes, que filma os dramas que o rodeiam, e muitas vezes com quem o rodeia. Ator antes de ser cineasta, Cassavetes, diferente dos jovens do Cinema Novo brasileiro ou da Nouvelle Vague francesa, trilhou, através principalmente da intuição, do amor à utopia, da amizade e do prazer no ato de criar, um caminho solitário nos EUA. "Cineasta independente" por excelência, Cassavetes e sua equipe decidiram aprender fazendo, ao largo da indústria. O "cinema americano" tal como é conhecido no mundo faz referência à "Hollywood", o "cinema industrial" por excelência, o cinema "hegemônico", "convencional", "do entretenimento", etc... É pouco conhecido porém o "cinema experimental americano", que notavelmente ocupa o posto de "mais experimental", e que tem nomes tão fortes quanto Michael Snow, Kenneth Anger, Maya Deren, Stan Brakhage, Andy Warhol, entre outros.
John Cassavetes nunca se interessou pelas reduções ao tratar dos conflitos humanos; é preciso tratar a América igualmente! O herói cassavetiano nunca seria reduzido a um estereótipo, menos ainda a heroína. Isso porque Cassavetes se interessa mais pela vida que pelos contos de fadas. Esse conto de fadas de que "o cinema americano é do mal" poderia até nos proporcionar um prazer estético se bem contado, mas se falamos historicamente, vamos acordar e analisar o que realmente importa.
Nunca tive um espanto maior em relação a uma imagem-face precocemente envelhecida como a de Cassavetes antes e depois do seu terceiro longa-metragem, Faces (1968). Foi o seu “filme dos cabelos brancos”, John tinha então 39 anos. Só de imaginar a dificuldade em terminar este projeto (em toda a sua amplitude) dentro das condições que possuía só posso me admirar e me emocionar. Quixotesco por excelência, o gesto deste homem inspirou cineastas independentes ao redor do mundo, homens que pertencem à mesma terra natal que ele: o Cinema.
improviso
Todo filme narrativo que se utiliza de atores para encenar egos experimentais em conflitos cênicos num tempo presente constitui-se indubitavelmente numa arte dramática. Ocorre neste caso um teatro, encenado para apenas um olho: o da eternidade. Quem compõe o drama é denominado dramaturgo, quem dirige a cena o "metteur-en-scéne". Cassavetes ocupava as duas funções, o que não quer dizer que os atores eram rigidamente controlados o tempo todo. Pelo contrário! Vindo da arte do ator, e extremamente ligado espiritualmente à liberdade jazzística de uma jam session, o cineasta americano julgava mais interessante para o seu projeto de filmar pela objetiva a alma através das relações subjetividades do corpo, um espaço para a ‘improvisação’ - que não passa de um estilo de interpretação. Um grupo de atores intima e artisticamente ligados, vivendo o teatro como vida e a vida como teatro, se constitui numa potencial "banda cênica", prontos, quando solicitados, para uma jam com seus instrumentos afinados e insuflados de inspiração e experiência. Por vezes a "improvisação" é tida como sinal de um "rigor frouxo" ou "um lance de dados". Se configurando porém como parte essencial do processo criativo de artistas como Jean Renoir e Glauber Rocha esta característica é fato incontornável para compreender de onde brota toda a emoção dramática dos filmes de John Cassavetes. Percebamos entretanto que não é o seu único modo de encenação, e - o mais importante! - não exclui os efeitos atingidos pela montagem, o enquadramento ou os movimento de câmera e de lente. Um ator que é indicado a agir de forma agressiva dentro de uma chave de interpretação de um personagem que ele já visitou espiritualmente com o seu corpo ganhará o seu contorno semântico total, enquanto cena dentro de um esquema narrativo cinematográficao, a partir apenas da conjugação desses vários elementos. Se cinegrafado num plano geral e fixo, um sentido bem diferente de um close com a câmera na mão. Rigor e vigor - como deve acontecer - são, neste cinema, duas faces de uma mesma moeda, assim como ator e personagem.
O que é ser um homem? O que é ser um homem para Cassavetes? Acima de tudo é trágico. Trágico pois a raça é frágil, é vaidosa, é neurótica, é violenta, é egoísta, é burra, é triste. É feio, o submundo moral onde se esgueiram os artistas, viciados, agiotas, jogadores, alcoólatras, maridos, por entre as putas, os chefes, as sogras, os amigos e esposas é acima de tudo decadente. É horrível, as relações que se criam entre esses filhos da psicose são patéticas, vulgares, odiosas, insuportavelmente medíocres. O drama desta sociedade segundo Cassavetes tem conceito: o mal-estar. Nela desfilam homens grosseiros, mulheres compulsivas, senhores autoritários, senhoras obsessivas. A histeria e o narcisismo são a tônica, o álcool e o sexo a fuga do eu (tão complicado). O princípio de prazer negativo no esquivar-se do desprazer. Traumas, sublimações, neuroses; o mundo mental, que já fora dissecado por Freud nos sonhos, é agora perscrutado por Cassavetes nos corpos. Colhe-se a alma, e todos os seus complexos. Decanta-se a dança dos relacionamentos, e todos os seus fluxos. O diagnóstico é patológico, crônico e degenerativo.
Ser um homem para Cassavetes? Acima de tudo é mágico. Mágico pois a raça é forte, fascinante, sedutora, honrada, vigorosa, engraçada, inteligente, doce. É belíssima a relação que os homens são capazes de criar entre si; o companheirismo é sagrado, todos sentem isso. E apesar de todos os problemas, de todas as complicações, de todas as chatices, os defeitos, as decepções, as traições, o homem pode ter abrigo - acima do colo feminino - no olhar do amigo, no abraço do parceiro. Uma noite de bebedeira ou uma partida de futebol com aqueles do peito pode curar várias doenças, ressuscitar o prazer pela vida. Apostar uma corrida, se esbofetear, disparar tiros, entornar cachaças, gargalhar, é desses ritos inúteis que se constitui esse sentimento precioso e inefável que só os homens conseguem estabelecer.
Maridos (1970) - comédia humana sobre a vida, a morte, a liberdade, a paternidade, o casamento e a responsabilidade - é uma dessas odes ao homem e o seu poder emocional oceânico (tão fascinante quanto catastrófico, tão apaixonante quanto repugnante). O único “hang out marcha fúnebre” da História do Cinema, este filme, como a maioria dos filmes de John Cassavetes, é uma obra única, diamante da originalidade criativa. É o testemunho de um estilo artístico e de um universo ficcional.
Como expressar – para este homem cassavetiano - o amor presente na dor da perda de um parceiro com um momento de silêncio institucionalizado no funeral da sociedade? Não! Eram precisos três dias! Três dias na sarjeta da mais pura catarse!
O que se tornaram afinal aqueles homens? O que significa dentro deles assumir o papel social que assumem? Maridos, pais, trabalhadores, adultos... em breve defuntos burocraticamente enterrados. Como lidar com o espelho do patético fim? Com a potência da juventude esmaecida pelas rugas do cotidiano? Como agir quando escancarada a farsa? Quando perdida a batalha para o tempo?
Quando penso na cena cassavetiana por excelência me vem a imagem da mesa de jantar, muito álcool e a perdida tradição das canções cantadas à palo seco contaminando os presentes a plenos pulmões. Cena presente em outros filmes de sua carreira, nesta obra ganha contornos metalinguísticos inegáveis. Como uma audição, os diversos povos imigrantes que constituem a América vão cantando as tradicionais músicas do velho e do novo continente. “I dream of Jeanie with the light brown hair...”, canta uma jovem, e nos remete à Faces, à Gena Rowlands, presente no filme aí, exatamente nesse momento de lembrança, o próprio John se emociona e beija-a na boca. Gena estará presente também nas fotos do passado que iniciam o filme, do outro lado da linha quando Gus falar com “sua esposa” pelo telefone público e no último plano, dentro da casa e fora do quadro, quando seus filhos chamam-na para presenciar o retorno do pai pródigo. A cena do bar se estende nessa espécie de audição com Gus, Archie e Harry dirigindo estas pessoas, buscando as interpretações verdadeiras nas músicas escolhidas por elas e na embriaguez das emoções que devem ser suscitadas. Não podemos nos esquecer que, acima de tudo, o poder de Maridos é sobre a paixão entre John Cassavetes, Peter Falk e Ben Gazarra.
É também uma obra ímpar acerca do poder expressivo de uma ausência presente: seja no quarto mosqueteiro que é a causa de tudo; na nostalgia do passado e na utopia do futuro, tão presentes quanto o presente; nas elipses entre sequências, radicalmente experimentadas em cortes sempre impressionantes; e principalmente no fora-de-quadro, elemento que ganha um status de “ritmo da essência”, como se sem ele o filme não balbuciasse nada. Em nenhum outro filme o “plano de conjunto” foi tão expressivo. Povoado e despovoado, rasgado, sufocado pela tríade que, pagando o seu luto, erra pelo intervalo que a morte de um parceiro desencadeou, este espaço - às vezes escuro no fundo de um boteco, às vezes claro nas ruas de Nova York, às vezes claro-escuro na solidão de um metrô ou uma de quadra vazia - é onde o drama vomita-se.
Cassavetes, com sua câmera e seus atores desvelou-se e desvelou-os acima de tudo, para compreender o cinema, a sociedade, e a vida. Só um desgraçado pode amar de forma pura, por momentos. A vida é uma festa encruzilhada à sua ressaca, devemos vivê-la juntos. Evoé Cassavetes, e viva o cinema, que nos ensina sobre a liberdade, a vida e a morte.
Saravá!
ResponderExcluir