sábado, 5 de fevereiro de 2011

A Comédia Humana de Eric Rohmer

“A música é o exercício do espírito que não sabe calcular” (Leibniz)
“O cinema é a música da luz” (Gance)

Assim como japonês Yasujiro Ozu e o italiano Roberto Rossellini, o francês Eric Rohmer prefere a vida mais que o espetáculo. E é por isso que faz filmes: para falar melhor do que não vemos mas sentimos, para ver melhor o que vemos mas não sentimos. É da natureza – dos seres e das coisas – que a câmera, o olho, a mente e o coração de Rohmer se debruçam; para captar, contemplar, analisar e se emocionar.

Um cinema de observação, de desbravamento/enquadramento silencioso do espaço, de fascinação pela poesia do cotidiano, com suas banalidades e acasos, seus movimentos e surpresas. No quadrado do cinema, participamos - normalmente durante uma hora e meia – do mundo – de novo; mas um mundo filtrado pelos olhos de um observador - dos mais apurados – do movimento cósmico e psicológico; um mundo reconstruído pelas mãos – das mais apuradas – de um dos artistas áudio-visuais mais importantes da História do Cinema.

Seu cinema não é o da fantasia, nem mesmo o do “entertainement”, não é o cinema da ação, mas o da contemplação. Cinema da atenção, da paciência, da espera, do respeito. Observamos o mundo através do cinema, o cinema à imagem do mundo: uma janela – aberta por Eric Rohmer. A economia nos movimentos de câmera e a simplicidade narrativa são o caminho que o cineasta modernamente abraça, para alcançar – através da clareza e da transparência – a Humanidade nos personagens, e a Graça nas coisas. A evidência dos detalhes é recolhida no tempo do plano, que nossos olhos percorrem sem grandes desassossegos. O suspense natural (a vida em movimento de acasos) é criado aqui por um matemático rigoroso, que nos apresenta o mistério dos números, através da perfeição das fórmulas.

Seus personagens, como todos nós, são sempre confusos, sempre enfrentando dilemas morais. Seus personagens, como ele, falam pelos cotovelos, se expressam verbalmente, conversam, divagam, tagarelam. Seus personagens, como ele e como nós, se expressam ainda mais quando não falam, quando escutam, quando olham, quando tremem, quando beijam, quando fazem amor, quando descansam, quando traem, quando choram, quando sorriem, quando se apaixonam, quando se desapaixonam. Seu cinema nos faz lembrar do que chamaram “cinema mudo” um dia, das grandes imagens que permanecem, de Lumiére, Griffith, Stroheim, Murnau, Dreyer. A força de suas imagens é fruto de um rigor devido preceitos éticos duros, que conduzem o seu universo ficcional e estabelecem o seu modus operandi. Rohmer busca o naturalismo, que não é algo captável na maioria das vezes – já que se trata de um cineasta ficcional – mas, sobretudo, algo exaustivamente trabalhado. Uma construção. Se seus atores parecem improvisar o tempo todo é porque atingiram um êxito, nada mais; se sua câmera parece desvelar o frescor dos gestos e expressões é porque a encenação é muito bem realizada, a contenção é acreditada e a observação cinematográfica é uma reflexão existencial permanente. Seu cinema é o da denotação, do significante, da superfície, do material, e é rumo a um classicismo nesse sentido que o cineasta caminhou em toda a sua obra (com raras exceções). Filmes que foram divididos em grandes capítulos (“Contos Morais”, “Contos das Quatro Estações”, “Comédias & Provérbios”), e que fazem parte, cada um ocupando uma pequena e essencial parcela, de uma obra única. É a Comédia Humana de Eric Rohmer, em som/imagem, pintando a segunda metade do séc. XX.

O tema máximo de seu cinema é o maior tema do mundo, principalmente depois da Revolução Francesa: as relações amorosas. Encontros, desencontros, inconstâncias afetivas, emoções incontroláveis, confusões sentimentais, paixões proibidas, problemas conjugais, solteiros solitários, adúlteros angustiados, mulheres livres, super-homens... Rohmer faz um mural da humanidade, cada filme é um retrato. “Todo grande filme é um documentário”, dizia o cineasta, o Balzac da sétima arte.

Rohmer capta um momento da vida de seus personagens. Não querendo abarcar o todo ou dar uma resposta, o cineasta questiona, observa, balbucia acerca. A narrativa seleciona, dá saltos, sem nunca perder a clareza, nem mesmo a linearidade. Propõe elipses, monta imagens de letras e fenômenos na construção diegética de um produto áudio-visual, que ao invés de se enfileirar em parágrafos como na literatura, se justapõem em planos. Estrutura as suas estórias como contos: um tema é focado, uma trama é trabalhada, todos os sub-temas e sub-tramas aparecem apenas para enriquecê-la. O assunto nunca é esgotado, o impossível e o fantástico são relegados, do possível se extraem gotas e mais gotas, para descobrir que são infinitas, que a última nunca chegará. Os personagens – modernos – buscam experiências para se compreender melhor (ou apenas para fugir ao tédio), o livre-arbítrio tem o peso existencialista e as dissoluções das tradições provocam uma nostalgia paradoxal.

Seu ponto de vista é o tableaux, sua montagem natural é o campo/contracampo. Mise-en-cadre*, e então mise-en-place**, mise-en-geste***, mise-en-jeu****... e, voilá: mise-en-scéne*****.

Eric Rohmer foi também crítico, ensaísta e analista; escrevia com seu nome de nascimento: Maurice Schérer. Defendeu, com seus amigos Chabrol, Rivette, Godard, Truffaut, a “política dos autores”, o cinema hollywoodiano. Escreveu sua monografia com Chabrol, um livro sobre Alfred Hitchcock, onde alertava para a arte do diretor (mise-en-scéne), a criação cinematográfica das formas feitas de idéias materializadas em blocos de imagem/som, arte este que estava sendo realizada, também e principalmente, no seio da máquina da indústria cultural, e que transcendia os clichês dos roteiros e os rostinhos das grandes estrelas.

Seu cinema é cheio de lições. Nos re-ensina a olhar o mundo, nos ensina a re-olhar o cinema, nos ensina sobre a matéria, e nos ensina sobre o espírito. O sacerdócio de Rohmer é rumo à sabedoria; a experiência da vida & da arte sendo a maior escola. Não conheci o homem mortal, apenas o imortal... aos que o conheceram em carne e osso provavelmente agora ainda sofrem a sua morte (1920-2010), eu, e quem acabou de nascer, vai conhecer apenas a obra, as pegadas, aquilo que o homem deixou para sempre, para todos. Aquilo de eterno.

* “construção do quadro”: o trabalho do diretor.
** “construção da localização dos seres e objetos no quadro”: o trabalho do diretor.
*** “construção dos gestos dos atores”: o trabalho do diretor.
**** “construção do jogo de interpretação entre os atores”: o trabalho do diretor.
***** “construção da cena”: o trabalho do diretor. Todas as outras estão contidas nessa construção.

Mateos.

7 comentários:

  1. oi Mateus,
    Qdo leio os teus textos, a maioria, eu fico sem saber direito o que dizer a respeito do teu respeito por esta arte, O CINEMA, assim mesmo e propositalmente em maisculas, porque é a respeito e por respeito que escreves, tambem e primeiramente por amor, mas daqueles bem profundos, aqueles que não se imagina emergindo deles, o mergulho é cada vez mais profundo, em outros textos queres e explicas as receitas da convivência amorosa, em outros estás puto por algum motivo e viras de lado na cama do prazer, enfim não sei escrever a respeito do que escreves, só reverenciar!

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  2. sim, o nome deste filme é "O Joelho de Claire". Inesquecível sempre o sutil modo que o Rohmer eterniza essa coisa tão sagrada que é o corpo feminino, sejam as celulites da Suzanne em "Carreira de Suzanne", o sorriso de Maud em "Minha noite com ela"... ou este joelho. Pra mim não existe contraveneno mais poderoso naquele quesito de reaprender a ver uma imagem (ao invés lê-la) do que os filmes dele. E o mesmo, em outro sentido para o Eugene Green, que é o texto que estou construindo pra provar pro nosso amigo Max o valor dele.

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  3. mto bom, adoro ler teus textos, são mt bem construidos e instrutivos, cheios de conhecimentos, coisa q me apaixona. Votos de que vc exceda suas capacidades, sempre.

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  4. Gostei muito da aproximação que fizeste de Eric Rohmer a Yasujiro Ozu. De certa forma, acredito que os dois são irmãos. Seus personagens parecem ser construídos da mesma forma: a partir do rosto (e corpos) dos atores, sem excessos e interrupções. Seria legal se falasses um pouco dos dois em um outro texto e também de Rosselini, que infelizmente ainda conheço pouco.
    Ótimo texto.

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  5. Muito do que escreveste é o que eu penso sobre Somewhere da Coppola (conheço relativamente pouco do Rohmer, mas o pouco que conheço acho que me permite fazer essa comparação :p). Claro que não é mais necessário ir pelo caminho do pioneirismo, mas é preciso discutir mais sobre essa essência que aproxima a Sofia, o Rhomer, o Tchekhov (incríveis os fragmentos sobre o Sirk aliás), a Jane Austen, o Balzac.
    Gosto muito de textos com uma motivação direta: como esse em que é totalmente necessário defender alguém ou em que uma pergunta não pára de acender na nossa cabeça. Eu já gosto bastante do Rohmer, e teu texto só me fez gostar ainda mais.

    Felipe

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