sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

É proibido minimizar o olhar de Ethan Edwards/John Wayne, e as palavras de uma mulher inocente

Dizem de Ethan Edwards (e de quebra o nomeiam alter-ego de Ford) que ele é um 'amoral'. Dizem que Ethan (e de quebra Ford) é racista, intolerante, colonizador, assassino, bárbaro. Dizem que Ford segue a simplicidade na construção das personagens, o velho maniqueísmo melodramático, o teatro do bem e do mal, onde os índios (que Ford odeia) são os demônios, e os brancos (como Ford), os anjos...
Vejo triste a grandeza de um mistério ser negligenciado, a beleza das nuances serem solapadas pelas pré-concepções. John Ford é um gigante, e não é à toa. A construção das personagens de um cineasta como Ford está no como eles dizem suas falas, na geografia do espaço (não feita apenas de homens), nos movimentos de câmera expressivos, nos olhares significativos, nas hesitações dos corpos, nas entradas e saídas de quadro, nos gestos involuntários de fúria ou carinho, na relação de identidade entre personagens aparentemente opostos, nas elipses que revelam passados obscuros, no áudio, no corte, na moldura, nas portas. Digam o que quiser, O CINEMA de Ford está intacto, Rastros de ódio está intacto, Ethan Edwards está intacto!
A primeira premissa para se assistir à um western é justamente a posição anacrônica que o espectador deve assumir. Começa Rastros de Ódio, e após os créditos: 1833 Texas. Nem "2009 Amazônia" e índios mundurucus, nem "2001 Eua" e terroristas árabes, mas: "1833 Texas" e brancos e índios comanches. Lógico que existem filmes (como Ivan, o Terrível de Eisenstein, por exemplo) que ambientam o filme em outra época e dialeticamente discutem o passado e o presente (no caso de Ivan: Stálin, que já tinha sido representado em outro contexto por Alexander Nevski). Mas definitivamente não é o caso de Rastros de Ódio; e Ford deixa claro isso no início, quando a porta da casa sozinha no meio do árido e inóspito deserto do Monument Valey se abre para mais uma estória; a família temerosa sai à varanda para ver o que vem do horizonte, e é ele, Ethan Edwards, que tinha ido à Guerra da Secessão para talvez não voltar, que volta para a casa de seu irmão; apenas ele, seu cavalo, um saco de moedas de ouro e várias cicatrizes incuradas. Ele não significa, mas é o próprio homem do Oeste (John Wayne), que, vindo do horizonte no início da narração de uma estória, ganha a dimensão de personagem. Isso não pode ser esquecido, nenhum nem outro, Ethan Edwards é um arquétipo histórico e um mito poético; um personagem apenas, de um certo gênero narrativo.
A relação de Ethan com os índios é o ápice poético - que talvez só será atingido de novo por Tonacci em seu Serras da Desordem - do paradoxal confronto/comunhão entre colonizador e colonizado. Ethan volta de uma guerra estúpida que a sua raça criou, todas as suas grandes sabedorias são indígenas, mas ética e existencialmente ele pertence à estirpe branca. Simplesmente rotular que Ethan é racista é minimizar problema filosófico-poético extremamente profundo – este da constituição de uma civilização a partir de uma processo histórico bélico de luta por territórios, entre culturas riquíssimas, que degladiam/admiram. John Ford, como todo ser humano, é extremamente misterioso em suas contraditórias afirmações – tal qual os personagens que o próprio deita os olhos. Tido normalmente como transparente, e defendido por seus "enquadramentos belíssimos", perde-se amiúde os seus berros sutis...
Quando, nos braços, Ethan enfim encontra a sua possível filha, sendo ela índia/branca, ele tem que decidir entre a vida ou a morte desse novo ser miscigenado. Decide a vida. Ele, porém, inescapavelmente, é um fantasma daquilo que não pode mais existir, senão entre a terra e o céu, vagando nos ventos, durante a contação de uma estória, a leitura de um gibi ou a projeção de um filme... no intervalo que o mito tece ao esculpir o real.

Mateos.

p.s: escrevi esse texto faz tempo e nunca tinha publicado, hoje vi Crepúsculo de uma raça e tive que fazer uma homenagem a este gigante, a mínima que fosse... Crepúsculo, obra-testamento, tem o the end que sintetiza poeticamente todo o Ford: a figura feminina branca pura, em tom de maternidade, para a a pequena índia pura que adotou durante o filme - além das raças, na mais pura miscigenação - soletra/ensina pra ela a palavra HOME, o contra-plano são índios cheyennes caminhando rumo ao horizonte...

Um comentário:

  1. Simplificar um homem como Ethan Edwards é o mesmo que dizer que Hamlet não passa de um esquizofrênico, que Emma Bovary não passa de uma vagabunda ou que Diadorim não passa de um travesti.

    Felipe
    (e tu, sempre fazendo o texto que cada artista merece =])

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