quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O anjo do arrabalde

Depois de mais de 10 minutos de cenas documentais da vida nas beiras das estradas canarinhas, 3 vezes o close intercalado pelos caminhões, o sol na cara, a fala ulterior – utilizada sempre de forma essencial-econômica por este cineasta – expressa a vulgaridade (vulga verdade); a luz é estourada, a cabeça meneia, o olhar é cabisbaixo: “Êta vidinha de merda!”. É o início de “Aopção ou Rosas da estrada” & a cartela de todo o cinema de Ozualdo Candeias, um dos cineastas mais inventivos de todos os tempos.
Depois surgem imagens familiares dos que vivem às margens dos rios de asfalto. O som, tecnicamente precário, só tem comparação em sensibilidade de percepção estética no cinema bressoniano. A sinfonia de ruídos é mamada nos seios da Natureza e da Humanidade, nos sons de animais e nas buzinas dos caminhões, nos uivos do vento e nas sintonizações dos radinhos. É uma orgia de simplicidade e potência.

A alegoria sexual da próxima sequência apresenta um Homem que não está nada distante do puro instinto animal. E uma Mulher, prostituta por não ter opção, que sobrevive do asco. Na segunda vez em que alguém pronuncia palavra no filme (que já vai chegando ao seu terço) implora-se, depois da ânsia de vômito dominada, que desligue a luz. Este Homem – caminhoneiro – trata esta Mulher como o seu automóvel. Com o martelo dá umas pancadinhas nos pneuzinhos dela. Bate também no seu instrumento pra ver se tá tudo durinho. O circo armado, cospe na mão, lambuza o pau e bate uma punheta; as mãos debatendo-se nas nádegas dela. Depois segue viagem. Apenas uma parada necessária e prática que precisava ser feita para poder continuar, como a troca de um pneu.

As primeiras falas que surgiram no filme foram de mulheres da estrada; e, apesar de ser um filme sobre a desgraça que é a vida dessas coitadas, a terceira fala é de um homem, tão fodido quanto. Ele vai cagar no banheiro da borracharia, na parede vários recados indecentes de viajantes, sabemos do contexto e já fomos dominados pelas imagens dessa “vidinha de merda”; quando ele, instintivamente, profere um “é, meu irmão, é isso aí...” solitário, antes de abrir a porta e voltar à realidade, já não observamos mais friamente... Sem direito de sonhar, o homem medita, analisa a cagada, limpa a bunda, e toca pra frente. Tem que ser...

Ozu Candeias, como o Ozu Yasujiro, de 50 mm empunhada, está preocupado, acima de tudo, com a realidade. Mas a realidade enquanto linguagem – que a fotografia inventou, e que o cinema encampou em duração.

O Pasolini brasileiro, o Cassavetes das valas, o Vigo dos trópicos, o Buñuel do Tietê, o Mario Peixoto cine-reencarnado... a verdade é que nenhuma comparação atinge a originalidade deste cineasta apócrifo de qualquer Bíblia do Cinema.

A tragédia é sua alçada, a desesperança o seu tom, a crueza o seu habitat. Não sobrevive da miséria, vive nela. Da destruição cria, do horrível faz poesia. Inventor de formas, eterno experimentador, ser que só poderia se expressar plenamente na forma audiovisual. Reúne no ato fílmico o ápice da evasão onírica e o zênite do poder de registro. Com a câmera em mãos esquadrinha o mundo decantado pela sua imaginação.

Caminhoneiro, pela estrada da vida sempre perseguiu no horizonte o cinema, e nas margens o mundo. O diário de bordo é composto por 10 longas, 2 médias, 11 curtas e 4 vídeos.

Encontram-se 5 pérolas para baixar aqui:


Aqui um estudo no resgate de sua obra:


Mateos.

2 comentários:

  1. sabemos que o estrume é mais que necessário para as flores nascerem, crescerem e para ele: morrerem, dando ainda mais podridão aquilo que força e beleza trazem para os recônditos que nós - limitados pelos muros de cetim e não seda- tanto tentamos ver ter ser. e alguns etc. conforto talvez...

    me dá?
    nãoooo

    égua, sentir a verdade de uma época e mais intimo, de uma condição suja, descontínua -cortando com toda nossa sensação de real? as vezes dá, o cinema, um lugar que pode ser fértil ]e eu começo a sair da superfície[, traz isso de modo mais parecido com a maré de nossas mentes, não mentindo mais nem preocupando-se unicamente com uma verdade, aquela desejada pelos Outros, e tão ávidos por ela, acabam por sujar-se no mais ralé do imediato e do superficial. Mas sim dando ricas e possibilidades de fluidez nas experiências interiores- por isso escrevo.ou falo

    Aquele cinema,esse cinema, parece-me que cria assimila, esconde, invade e a gente permite-se...?sim, eu me permito,(e vcS?) e por ser um dos recôncavos mais importantes se não o mais da tal arte contemporânea, ele traz o discurso e o fato de quase um deixa pra lá das individualidades que até a renascensa ainda imperavam sobre as produções de arte, pena , pena que as coisas não se tornam "lama cinematográfica"
    o sujo, a lama, o precário... de candeias em a margem parece não ser metáfora, é aquilo pronto, a vida =os absurdos, a morte= as sensualidades. A loucura é quem mais se movimenta, entre nós quem mais se movimenta? o louco é quem mais dança, é quem mais suaviza a densa e recortada margem do tiête em fim da década tão falada e tão pouco falada de 60.veto. acho que pensadores e os tais historiadores esqueceram-se de retirar esse cineasta do arquivo morto, ainda bem que uns começam a percorrer e com tantos problemas técnicos iniciam um mostrar. aplausos gente! em a margem, volto, todos parecem estar inclusive a morte a margem, ?à espera, transitando, assim como nós, a margem de uns pensamentos e de umas obras tão importantes pro Brasil que quer cinema e não vai até o seu quintal, não brinca com os monstros, e nem pega carona com "caminhoneiros perigosos', hahahaha, aiiii
    e se não fosse o sofrer...

    acho q perceberam que em maioria deste texto estive falando em nós, sabendo que posso estaar falando pra mim, mas - digo plu-ra-lis-ti-ca-ment-e por também Andar descalço, sentindo "o pedaço de mau caminho" o qual somos e temos eu e ... candeias e ...(hahaha-pre-tensão?:sim)

    cara, me senti muito privilegiado por ontem ver: a margem, fantástico, obrigado cara por exibir essa obra que é mais que prima é mãe filh(o)(A) pai, é filha da puta.

    ResponderExcluir