terça-feira, 4 de maio de 2010

Louis Feuillade e o mistério do movimento


É recorrente a sensação, ao se visitar o cinema mudo, de que todo o cinema - esteticamente falando - tinha sido conquistado nos primeiros 30 anos.

Louis Feuillade, nos anos 10, já tinha dominado a encenação cinematográfica com a elegância de um dos homens mais rigorosos da história da arte visual narrativa. Contemplar o "ciné-roman" Les Vampires, de 1915, é estar em contato com a própria mise-en-scène. Este termo, problemático na teoria crítica, é - não diria a alma do cinema - mas parte elementar de sua essência enquanto ferramenta que propõe uma construção artística. O aparato cinematográfico utilizado para produzir uma obra de arte requer a atenção a esse elemento estético, artifício expressivo de todos os grandes cineastas narrativos. Teatral e pictórico (já que envolve encenação e quadro), narrativo e plástico (já que envolve movimento da trama e coreografia de movimentos), a mise-en-scène cinematográfica é para muitos a essência da sétima arte. Trabalhar a mise-en-scène de uma obra de cinema é manipular o tempo/espaço da imagem. Não é à toa, a frase já virou velho ditado: “tudo está na mise-en-scène”.

Feuillade, cineasta popular da Gaumont, escarnecia os vanguardistas e falava que fazia cinema para o povo e não para elite. Somado a isso segue-se a característica, comum ao seu tempo, de enobrecer essa nova arte que muitos desacreditavam como menor e sem futuro. Apesar da rapidez industrial com que lidava o diretor no ritmo diário da empresa em que era funcionário (fazia um curta numa tarde e um episódio das suas séries em 7 dias), o rigor na composição do quadro e na encenação de seus atores é, na maioria das cenas, impressionante em sua virtuosidade e sutileza. Feuillade queria, ao mesmo tempo, emocionar multidões e dialogar com os grandes artistas. Teve êxito.

Se utilizando normalmente do plano-sequência, com inserções (normalmente detalhando o conteúdo de uma carta ou mostrando uma foto), a matéria-prima de seu cinema foi o balé de posturas e gestos de atores contracenando entre si e com o cenário dentro do quadro, comumente totalmente focado. Sua significativa disposição espacial na utilização primorosa tanto do centro do quadro como de sua profundidade e os sutis jogos de olhares e de encobrir/expor personagens é de um profundo domínio do movimento em si. A maior aula de mise-en-scène que o cinema já deu, um baile!

A experiência estética que tive com este francês foi nostalgicamente análoga a que tive com o famoso quadrinista belga Hergé. Sente-se que as tramas das aventuras de Philipe Granger e Tintin vêm de uma mesma fonte. Não obstante, todo o rigor na composição do quadro e sua justaposição na montagem em continuidade de cada sequência, além das geniosas perseguições, o pitoresco humor, as fascinantes personagens, o uso expressivo da cor (Feuillade se valendo apenas de preto, branco e cinza), e, principalmente, o suspense que se intensifica acerca da “próxima cena”, no caso de Hergé no momento de virar a página, no de Feuillade os segundos de espera de um letreiro, enfim, todas essas estéticas sensações me deram um sentimento dèjá vu anterior à análise crítica.

Surpreendentemente, o que se segue ao suspense dessa espera, nos dois casos, é uma surpresa estética, pois sempre são únicas as cenas que se desenrolam. Um pré-estiliza um espaço real e coordena a coreografia de seres humanos, outro os desenha e a partir da observação do movimento real cria o irreal movimento estático através dos traços.

Interessante essa característica estilística me chamar atenção nessa comparação pois se trata de um elemento expressivo da obra a partir da montagem.

Em 2010, analisando os filmes de Feuillade de quase 100 anos atrás parece que todo o resto é meio igual, e ele, conciso e econômico, simples e complexo, é o notável diferente, um destaque, um dos grandes pioneiros, um dos atuais mestres.

Mateus Moura (05/05/10)

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