quarta-feira, 27 de outubro de 2010

“e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ (...) ‘estamos indo sempre para casa’”

Como toda boa série sobrevivente o primeiro episódio de Anos Incríveis contém a essência de todo o seu projeto. A diferença essencial, entre esta e as outras séries, é que em Anos Incríveis tal episódio atinge o status de obra-prima. Convenhamos, Anos Incríveis não é qualquer série.

Começa.

A voz rouca de Joe Cocker brada o refrão imortal de With a Little Help From My Friends (hino máximo de sua era) e acompanhamos uma sequência de imagens domésticas de uma família de subúrbio americano. Abruptamente seguem-se turbulentos e frenéticos flashes de imagens de noticiário do ano de 1968. A idéia é: durante 5 anos acompanharemos a História e a Estória, o macro e o micro, o coletivo e o pessoal. A voz que nos conduz, através do tom das memórias, refletirá nostalgicamente os anos (incríveis) de sua infância: um irmão mais velho insuportável, um pai amedrontador, uma mãe conciliadora, um melhor amigo inseparável e, claro, a menina dos olhos da vizinhança.

O que aconteceu no ano de 1968? Se você perguntasse a Kevin Arnold – ou a qualquer outra criança de 12 anos que vivia em um subúrbio americano – ele diria que Denny Mclain [jogador de baseball] ganhou 31 jogos, ou que o Mod Squad [série de TV] era um sucesso, etc. É claro que o ano de 68 também foi o ano da morte de Martin Luther King, da Guerra do Vietnã e do impeachment de Nixon, mas falaremos disso depois.

Falemos agora de outras coisas mais urgentes.

Maldizem por aí a TV - suporte nascido nos anos 50 - por ela reciclar toda a linguagem cinematográfica construída em mais de 50 anos. A pergunta cabal é: E daí? Afinal, o que fez o cinema senão reciclar linguagens construídas há milênios? Toda nova arte é uma fênix, nasce das cinzas de suas primas; todas vieram do mesmo pó, e todos ao pó retornarão. Toda prole, aceitemos ou não, relembram os traços de seus pais, porém cada impressão digital contém um desenho. O travelling, que vai se colorindo para se encerrar num close de um menino aflito para alcançar a bola de football numa rua qualquer de um subúrbio americano, é uma das mais belas apresentações de personagem, não apenas da TV, mas de toda a linguagem audiovisual. Marlens e Black se apropriam da decupagem clássica, construída por Griffith, Murnau, Ford, Leone; e assim como Murnau bebeu de Griffith, Ford de Murnau e Leone de Ford, o casal sacia-se na fonte, e como Murnau, Ford ou Leone, criam o novo: falemos de obra, e de lógica interna. De ferramenta, e de seus limites: se a tv não tem o tom épico do cinema, o cinema não tem a tom minimalista da tv. Contar uma estória audiovisualmente com o mínimo, atingir a economia, apenas o estritamente necessário - não confundir com a humildade, a busca humilde. O estilo de Anos Incríveis, por se tratar de obra audiovisual, se evidencia na construção dos sons e imagens! Todo ele já presente e vibrante no episódio-piloto: a inserção das imagens domésticas na construção mnemônica dos sentimentos familiares, o poder atmosférico da cultura (da moda, das canções, do contexto político) e sua presença nos corpos, a mise-en-scène seguindo sentimentalmente o nível de percepção do mundo de seus personagens, o acompanhamento psicológico do crescimento destes seres e, lógico, a inigualável força poética da narração em primeira pessoa sob o tom lírico da busca de um tempo que se perdeu. Pois se, acima de tudo, Anos Incríveis é um série de sensações mais que de fatos, é porque não acompanhamos os fatos, mas a imagens (impossíveis) que brotam desta narração – subjetiva por excelência.

Diante de tamanha potência narrativo-imagética, a cada episódio que assistimos de Anos Incríveis, surge a pergunta: afinal, o que representa a TV dentro do universo audiovisual? Assim como já aconteceu com o cinema, a TV é considerada a prima pobre ou, ao contrário, a prima rica, a fútil que só quer saber de ganhar dinheiro. Partindo da idéia de que pouco importa para a Arte da onde ela tenha vindo, ficamos com uma questão central dentro da discussão: qual a diferença entre cinema e TV? Seria o caso de considerarmos como maior diferença não a linguagem (pois se trata do mesmo audiovisual do cinema), mas de circunstâncias de produção. E no que diz respeito a essas circunstâncias, a TV tem muitas particularidades: o “dever” de “agradar” o público, a produção semanal de episódios (no caso do seriado), além da eterna ameaça dos índices de audiência que dão palavra final sobre a sobrevivência ou o extermínio de um programa de TV são algumas delas.

Anos Incríveis se dá neste ambiente, e ao invés de Carol Black e Neal Marlens (criadores da série) ficarem reclamando para si o status de “cinema na TV”, eles extraem da simplicidade estética (e lembremos como é difícil alcançar a simplicidade!) e da narração a longo prazo, que quase sempre permeia um seriado, os momentos sagrados da epopéia de um garoto de 12 anos que todos nós fomos. E a que estamos nos referindo quando afirmamos que os criadores desta série não reclamam para si um status de cinema? É que em Anos Incríveis não existem referências a grandes obras cinematográficas que exerçam a função de legitimar a série como obra séria: tratam-se de ressonâncias de uma cultura audiovisual que Black e Marlens compartilham e que são evocadas sempre que podem contribuir para a construção do universo proposto. John Hughes, Martin Scorsese e Charles Chaplin não são simples notas de rodapé a serem consultadas por Black/Marlens, o casal de roteiristas e produtores da série é acometido pela mesma paixão da qual esses outros gênios sofreram: a necessidade de transformar seu coração em imagem/som.

Afinal, o que aconteceu no ano de 1968? Se você perguntasse isso ao público que acompanhou Anos Incríveis a resposta certamente seria que Brian Cooper estava morto, e que Kevin e Winnie tinham se beijado pela primeira vez. É claro que é o ano da morte de Martin Luther King e da Guerra do Vietnã, mas para um certo garoto, morador de um subúrbio qualquer, do alto dos seus incríveis 12 anos de idade, esses fatos não eram, de forma alguma, menores do que o seu primeiro beijo e a morte do cara da sua rua que definia o que era ser “cool”.

Entre 1988 e 1993, toda semana, lares ao redor do mundo eram invadidos por um dos maiores épicos já empreendidos pelo audiovisual. Ao (re)visitá-lo mais de 20 anos depois, um prazer se sobressai: o de estar vivo. Anos Incríveis é uma escola, um documentário, uma roda de amigos, um colo de mãe, um lar.

Relaxemos, e aprendamos.

Mateos e Felipe Cruz.

p.s: texto escrito para a estréia do Tv Clube.

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