terça-feira, 6 de abril de 2010

Amigos e mestres

Sabe aquelas obras que, no momento do virgem contato, sentimos a estranha e paradoxal sensação concomitante de inveja e admiração? São dois sentimentos que parecem causais se olhados descuidadamente, mas que, entretanto, revelam nuances mais complexas se bem analisados. Tomando o lado bom dos dois é que se salva a alma; da inveja retém-se e investe-se na caminhada pela superação do objeto invejado, da admiração elimina-se a bajulação e apreende-se a reflexão.
Entrei no cinema por Buñuel, na crítica cinematográfica por Truffaut, e foi com esse mesmo dúbio e fascinante sentimento que experienciei com eles o mesmo que agora experiencio com Jairo Ferreira. E assim também foi com Fellini, Godard, Glauber, Reichembach, Vigo, Fuller, Bresson, Bava, Pessoa, Cecim, Degas, Artaud, Zé Ketti, Morricone, Ennis, Becket, Nelson Rodrigues..............
Esse sentimento só surge quando primitivamente descobrimos que o nosso projeto já foi realizado. Mas graças a Deus, o universo (de onde somos parte constituidora) é mutante, e o projeto vira outro, fagocita o ex-gêmeo e a gestação segue.
Tudo isso me vem à mente enquanto leio o livro do Jairo [Críticas de invenção: Coleção Aplauso]. Meu primeiro contato com o crítico maldito foi com o "Cinema de Invenção", sem dúvida a bíblia do cinema marginal brasileiro; e, sempre me interessou o que ele defende, a postura, as idéias, as preferências, as referências. É um amigo que converso sem precisar aguentar a presença física. Minha relação com a crítica sempre foi essa, a vontade de conversar com outras pessoas sobre os filmes e cineastas é que me leva ao contato com os críticos, também o que me leva à crítica. Alguns eu ouço sempre, às vezes falo, com Jairo a conversa flui. Não falo diretamente com ele (até porque ele está morto), mas dialogo através dos textos. Algumas vezes discordo radicalmente de suas posições, e depois até vejo que ele discordou da sua própria postura anos mais tarde. E isso me interessa muito, porque posso discordar de tudo o que falo nesse texto alguns dias mais tarde e isso realmente me encanta.
Esses senhores que citei acima - que parecem mais amigos pelas "afinidades neurológicas" comigo - muitas vezes perdem em conceito de grandeza para os que chamo de "mestres". Um exemplo nesse caso é o Paulo Emílio Salles Gomes, que é maior que o Jairo. Com o Paulo Emílio, porém, mais escuto, como o aprendiz atento. Não que ele esteja isento de erros ou que não discorde de algumas de suas posições, é só que os erros que ele toma não seriam os que eu provavelmente tomaria, enquanto que com os "amigos" se passa justamente o oposto.
O primeiro artigo do livro que estou lendo do Jairo é "Cinema: música da luz", e a epígrafe é de uma síntese solar tão extasiante que transmito como uma sabedoria. De Elie Faure:

"O cinema, arquitetura em movimento, logra despertar sensações musicais que se solidarizam no espaço, por meio de sensações visuais que solidarizam no tempo. Na verdade, é uma música que nos toca por intermédio da vista"

De Jairo, indico o resto do texto para quem se interessar... uma reflexão existencial sobre o cinema, a crítica e o Eu. Biscoito fino. O título é "Cinema: música da luz" - referência à mágica frase de Abel Gance: "O cinema é a música da luz".

Mateus Moura

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