“Nenhum mortal é feliz até o fim, nenhum, nem afortunado, pois nunca nasceu alguém imune à dor”. (Eurípides)
Samuel Fuller dá ao mundo em 64 a continuação de Shock Corridor, a mesma atriz (a soberba Constance Towers), que viveu uma dançarina de cabaré no filme de 63, interpreta uma prostituta agora em 64. Em “Paixões que alucinam”, seu amante, enlouquecido pelo prêmio Pulitzer de jornalismo, enlouquece ao tentar solucionar um caso de assassinato em um manicômio. No decorrer da narrativa ela afunda junto com ele, mas em lágrimas e tragédia. Constance Towers é a heroína fulleriana por excelência. Diferente do herói de Sam, duro e sem ilusões, a heroína, apesar de dura também, têm ilusões, e não lhe é permitido, como no caso masculino, o cobertor da insanidade. O mundo e o Destino sempre a derrubam. Ela afunda, mas limpa as lágrimas, levanta, e segue. Sam Fuller foi um grande construtor de grandes metáforas. Assim como em Shock Corridor, - fazendo alusão ao manicômio - a pequena cidade de Grentville em The Naked Kiss é microcosmo da América. Com atuações magníficas, planos inesquecíveis, metalinguagem salutar com os gêneros hollywoodianos, o artista maldito assina seu último filme nos EUA antes de partir para a Europa. Ninguém critica mais a América do que os americanos. Fuller nos revela, com sua câmera desnudadora, a podridão da hipocrisia americana. Com seu habitual irônico humor negro, nos apresenta a cidade com uma bela faixa, que nos faz rir: “Desfile de moda para crianças deficientes. Clínica Ortopédica de Grentville”. O contraste que o diretor estabelece entre o “submundo” e o “outro mundo” é exagerado arbitrariamente - mais uma carta irônica na manga do sátiro. Quando Kelly (Constance Towers), mulher dos dois mundos, se integra ao outro mundo, as cenas atingem o paroxismo do confortável. A dona de casa onde Kelly se hospeda é tão doce que chega a ser risível. Mas nada é simples nos filmes de Samuel Fuller, nenhum personagem é apenas um estereótipo. Todos são símbolos, mas carregam vida. Todos sofreram ou sofrem alguma tragédia. A dona de casa, por exemplo, é solitária, o homem que esperava não sobreviveu à guerra. Griff (Anthony Eisley) é como Kelly, transita entre os dois mundos. É mais frio, mais desconfiado, sem ilusões, mais podre, mais honestamente podre: o herói fulleriano por excelência. O diretor, analista emocionado do ser humano e suas paixões, trata, pela primeira vez na história do cinema, do tema da pedofilia. Grent (Michael Dante), supostamente um homem caridoso, rico, moralmente perfeito, é também um pedófilo. Apaixonado por Kelly, aceita se casar, mesmo ciente do seu passado “bombom”. Kelly, porém, quando aceita, desconhece seu presente doentio. Grent acredita que eles – anormais – podem se acertar, ser felizes e aceitar as inclinações mórbidas, assim como os passados sujos. Ela não entende assim, não aceita sua doença, não aceita acordo, nem sequer cogita a possibilidade. Como um doce piano que esparrama a melodia triste da anunciante tragédia, ela ergue a mão e o mata. Seu mundo rui mais uma vez. Quanto tudo parecia perfeito como um musical de Hollywood, num happy end com música-tema, o mundo ruiu, de novo. É o noir.
A construção da cena da morte de Grent é o atestado da genialidade do diretor, e permite a anatomia de seu estilo incomparável. A sequência começa com toda a alegria de Kelly caminhando entre crianças com sua simples caixa de papelão contendo seu vestido de noiva embaixo do braço. Ao adentrar a casa de Grent a melodia que toca é a que nos emocionou minutos atrás com sua mensagem de esperança e amor (mesmo sendo paraplégicos – marcados pelo destino – podemos amar e ser amados, mesmo sendo uma ex-prostituta do submundo). Fuller nos faz acreditar, nos emociona, nos comove. Há um close no rosto encantado de Kelly, a câmera flutua, ela está no céu, tudo está perfeito Não há corte, o seu rosto se modifica, de repente fica muito sério, ela olhou para baixo e viu algo que não lhe agradou. Não sabemos o que é. O contracampo nos mostra o close de uma menina. Uma panorâmica nos mostra o saltitar daquela inocente criança que sai porta a fora. Voltamos ao close de Kelly, Brent – também em close – aparece. Seus rostos preenchem a tela, é o confronto de faces, nada mais importa no mundo para encampar. O campo/contracampo acelera denotando a tensão, e elevando a emoção. Ela está furiosa, ele continua com sua cara que estranhamos desde o começo e não sabíamos o que era. Kelly – com sua experiência de submundo – deveria ter acreditado mais em seus instintos (que atestaram o “naked kiss” de Brent: a marca do pervertido). Mas aquela mulher não consegue não sonhar, ela precisa de ilusões. Tudo que ela queria era sair do submundo, onde ela sabe que a felicidade é impossível. Ele – que vive no outro mundo – porém, também faz parte do submundo... descobrimos que ninguém está isento de sujeira, a única diferença do submundo para esse é que aqui tudo é velado. Com a mesma emoção que Sam Fuller nos elevou à crença na beleza do ser humano, ele nos joga no abismo das culpas psicológicas, das doenças sociais, do ódio, da dor e da tragédia. Numa das imagens mais poéticas da história do cinema, Kelly, após derrubar Grent com uma telefonada em sua cabeça, enrola o vestido que deixou cair durante o ato, e redobra o véu de noiva – símbolo da pureza – que passou a velar a pedófilo, já defunto no chão.
Kelly é presa por assassinato. Durante a correria para provar a sua inocência, velhos desafetos vem acertar suas contas, incriminando-a. Griff - o bruto sentimental - é ambíguo o tempo todo quanto às suas crenças acerca do caráter de Kelly. Ele sabe que ela é que nem ele: habita os dois mundos, mas não pertence a nenhum. Ele sabe que ela é capaz do pior e do melhor. Não há parâmetros. Herói num segundo e anti-herói no outro. Esse é o ser humano: o que viveu alegrias e tragédias: o adulto. Só uma criança, que ainda não aprendeu a hipocrisia, pode atestar a verdade. É o que acontece, e Kelly é absolvida. Está livre para deixar a cidade. Na saída, a população, imóvel, a olha com ambigüidade. O primeiro plano da cidade volta, a faixa que nos faz rir novamente é o golpe irônico final do maldito e eterno Sam Fuller: “Piquenique anual da câmara do comércio para crianças deficientes. Clínica Ortopédica de Grantville”... créditos... ela segue... fade-out.
Mateus Moura.
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